Entrevista com Celso Ferretti - Ensino Médio | Série "Conquistas em Risco" |

Dando prosseguimento à série "Conquistas em Risco", o Portal da ANPEd entrevista Celso Ferretti. O pesquisador sênior da Fundação Carlos Chagas e professor da Universidade de Sorocaba (Uniso) constata os atuais riscos de um retrocesso na configuração do ensino médio. Para isso. Ferretti mostra em perspectiva histórica como questões de qualidade e formação oferecida no EM estão em disputa desde a década de 1920, perpassadas a partir da década de 1980 por uma ofensiva neoliberal, com disputas de caráter político a respeito do currículo ainda mais acirradas recentemente, como atestam o projeto de lei de reformulação do Ensino Médio e a proposta da Base Nacional Comum.

Imagem: IFSP

Num contexto de conquistas em risco (seja por cortes em investimentos e programas, seja por ofensivas conservadoras no congresso e sociedade, investidas de empresários e fundações), como é possível analisar a questão do Ensino Médio? Qual a importância das Diretrizes Curriculares Nacionais, uma perspectiva de formação integral e de preocupação com a juventude? Como as pesquisas que você desenvolve apontam uma problemática em torno do tema?

As principais questões relativas ao Ensino Médio, nomeadamente, sua identidade, a qualidade da formação oferecida, sua organização curricular, sua universalização, sua relação com a educação profissional técnica de nível médio não são recentes. Na verdade, pelo menos duas delas – a universalidade e a organização curricular - remontam aos anos 20 e 30 do século passado. As relações com a educação profissional fazem-se presentes principalmente a partir dos anos 40 com a reforma Capanema, por meio da qual se dá a criação do ensino técnico, marcando fortemente uma dualidade que já se fazia presente, de maneira menos formal nos anos anteriores: a educação propedêutica, voltada para as classes sociais que podiam almejar a continuação dos estudos e a formação profissional para os setores populares, com características de terminalidade. Mesmo assim, dificilmente se poderia falar em universalização, um problema que permanece até o período atual, ainda que vários passos tenham sido dados no sentido de promove-la.

O fato de termos, hoje, um volume expressivo de jovens que não estão frequentando o Ensino Médio, de outros que o estão fora da idade escolar própria (15 aos 17 anos), atestam bem a ausência dessa universalização. No que respeita à qualidade do ensino médio, os questionamentos estão presentes desde o início de sua oferta, no geral conectados à organização curricular. Nesse particular, é emblemática a reforma curricular dos anos 70 do século passado pela qual, sem condições para fazê-lo, os governos da época tentaram transformar compulsoriamente o ensino médio das escolas públicas estaduais em ensino profissionalizante, redefinindo autoritariamente sua identidade, situação revertida nos anos 80 com a volta do ensino médio “regular”. O caráter emblemático decorre não apenas dessa circunstância, mas, também, do que a motivou, ou seja, a perspectiva de atender, de maneira massiva, ao falso suposto, promovido pela articulação entre o governo brasileiro e a USAID segundo a qual o país, por força de suas relações com o capitalismo internacional, deveria investir fortemente na formação de técnicos e profissionais de nível superior nas áreas ligadas aos setores produtivos, tendo como referência a Teoria do Capital Humano.

Chamo a atenção para esses aspectos porque os debates que hoje se fazem em torno do ensino médio têm por referência os elementos antes referidos, com destaque para a dualidade e para a organização curricular, esta última, por suposto, definidora de sua qualidade, o que é, no mínimo, um reducionismo. A qualidade depende não apenas da proposta curricular, mas das condições objetivas que a demandam, bem como das que viabilizem sua materialização de forma consequente, entre elas a garantia de carreiras profissionais atraentes para os professores e o financiamento necessário. No momento atual, a tais aspectos acrescem-se outros, como, por exemplo, as mudanças ocorridas no âmbito da produção capitalista, com a  produção e incorporação de novas tecnologias de base física e organizacional, as quais geram consequências para a classe trabalhadora em termos de drástica redução do acesso ao emprego e de formas contratuais de inserção no mercado formal que privilegiam a flexibilidade; a preocupação com a diversidade cultural étnica, racial, de gênero e sexualidade.

Nesse contexto avultam, como ocorreu em períodos anteriores, as disputas em torno do ensino médio, relativamente a que formação oferecer aos jovens que o frequentam,  tende a remeter à discussão do currículo. É este o embate presente político que coloca em confronto duas perspectivas distintas em relação ao ensino médio, ainda que haja, sob alguns aspectos, interrelações entre ambas, embate que não se circunscreve ao plano educacional, mas se espraia por amplos setores da vida social.   

De um lado, o enfoque neoliberal que, desde o início dos anos 90 vem insistindo na necessidade de que a educação brasileira, e não apenas o ensino médio, se adeque às demandas do capital a partir da reestruturação produtiva promovida por este. Nesse contexto, o governo FHC, conferiu, de um lado, atenção primordial ao ensino fundamental, inclusive no que diz respeito ao financiamento, e, de outro, no âmbito da educação profissional, promoveu a separação entre a formação geral e a formação especificamente profissional, rompendo com a forma histórica pela qual vinha sendo desenvolvido o ensino técnico desde a década de 1940, sob o argumento de que sua articulação num mesmo curso, como ocorria, não beneficiava nem a perspectiva propedêutica, nem a profissional, apesar de as escolas técnicas terem sido consideradas, durante as décadas de 70 e 80, as que melhor formação ofereciam. Esse mesmo enfoque foi responsável por uma reforma do Estado e da administração pública promovida com o intuito de configurar o primeiro com gestor e a segunda como flexível, do que resultou o estímulo ao fortalecimento das relações entre o setor público e o privado, sob o suposto de que tal associação criaria melhores condições para a satisfação das necessidades sociais, o que possibilitou não só nesse governo, mas também nos governos Lula e Dilma, que a iniciativa privada se imiscuísse progressivamente em campos de atuação do Estado como, por exemplo a saúde e a educação, convertendo a  atenção a direitos em prestação de serviços, transformando tanto um campo quanto outro em mercadoria.   

De outro lado, o enfoque de educadores e de profissionais de outros campos, que contrapondo-se à visão estreita de formação profissional direcionada ao mercado, seja no nível do ensino médio e profissional, seja no superior, propunha, desde os anos 80, uma educação de caráter omnilateral, ampla e crítica, tendo em vista sua contribuição para a formação de sujeitos sociais não meramente adaptados à sociedade capitalista, mas que, submetendo-a à crítica, mirassem uma forma de organização social mais justa e igualitária, em que a divisão de classes não relegasse alguns à miséria enquanto outros vivessem na opulência. Tal proposição fundamenta-se na concepção de que a constituição histórica da sociedade humana e a produção do conhecimento que ela gerou ancoram-se no trabalho e que o domínio dos fundamentos desse conhecimento é condição primordial para a formação integrada de caráter omnilateral dos jovens que frequentam o ensino médio. Nessa perspectiva se assenta a proposta curricular do ensino médio integrado, assim como do ensino médio integrado à educação profissional que elege o trabalho como princípio educativo e a pesquisa como princípio pedagógico. A incorporação de aspectos centrais do Decreto 5154/2004 à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional bem como as Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio aprovadas em 2011, depois de duras batalhas no Conselho Nacional de Educação, representam, nessa perspectiva, ganhos para o ensino médio.

A expressão de tal proposta no plano legal só foi possível a partir do governo Lula, ainda que com limitações decorrentes das alianças políticas promovidas em nome da governabilidade, as quais acabaram fortalecendo a presença do setor privado no campo educacional, por diversas formas. Uma delas é representada pela constituição do Movimento Todos pela Educação, criado em 2007, do qual fazem parte grandes empresas nacionais e que atualmente exerce grande influência na formulação de políticas, programas e ações educacionais do MEC. Outra é a ação desenvolvida por instituições privadas junto a prefeituras municipais no sentido de traçar rumos e desenvolver projetos educacionais referentes à educação infantil e ao ensino fundamental. No caso do ensino médio a atuação do setor privado caracterizou-se, nos anos recentes, por dois tipos de intervenção.

Uma refere-se à extensão a esse nível de ensino da proposta de Escolas de Tempo Integral, originalmente dirigida ao Ensino Fundamental. Tal proposta foi desenvolvida inicialmente em Pernambuco através do Instituto de Co-Responsabilidade pela Educação - ICE - um empreendimento de empresários e que se propagou por vários Estados, o qual se propõe implantar sua filosofia escolar em escolas de nível médio, inclusive públicas, em articulação com equipes das Secretarias de Educação tendo por base dois modelos, o Pedagógico e o de Gestão. Nessa perspectiva, a responsabilidade pelo custeio da escola é do poder público enquanto a gestão é compartilhada entre este e o ICE. No caso de São Paulo esta constitui uma das ações que integram o Programa Educação-Compromisso de São Paulo cuja origem remonta ao início do 1º governo Alkmin e que tem o apoio de várias empresas de alta envergadura. No plano pedagógico a intenção é a de formar jovens tendo em vista as demandas empresariais em que a ênfase no domínio do conhecimento historicamente produzido, defendida pela concepção de formação omnilateral, é transformada em ênfase no desenvolvimento de competências e habilidades cognitivas para que crianças e jovens, ativamente, por meio do aprender a aprender e com a supervisão dos professores, adquiram por si mesmos esses conhecimentos.

Outra ação foi a desenvolvida por uma Comissão Especial da Câmara Federal dos Deputados a qual, por meio do Projeto de Lei 6840/2013, propôs a reformulação do atual ensino médio, com base no argumento da baixa qualidade deste. Uma vez aprovada, ela implicaria em mudanças de peso no artigo 36 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. A proposta do PL 6840 original aborda 8 pontos, mas no caso presente, serão abordados três, que são os mais candentes e que, de certa forma incluem os demais: a) a organização curricular; b) a oferta do EM diurno em tempo integral (7 horas diárias); c) a proibição de acesso ao EM noturno dos jovens com mais de 18 anos. A proposta da Comissão Espacial foi alvo da ação crítica de educadores e suas entidades que lançaram um Movimento Nacional em Defesa do Ensino Médio.

O primeiro ponto da crítica dirigiu-se à organização curricular na medida em que esta: a) promovia a segmentação da formação básica a ser oferecida, pelo fato de indicar que a 3ª série do curso seria subdividida de modo que os alunos optariam por uma das áreas de conhecimento (opção formativa); b) não especificava as disciplinas que comporiam as áreas de conhecimento estabelecidas em lei; c) incluía temas transversais interpretados como desnecessários por terem se mostrado inócuos quando usados na proposta curricular que vigorou durante o governo FHC; d) no caso do ensino técnico, estabelecia conflito legal com as disposições atuais a respeito da formação profissional ao propô-la como uma das alternativas formativas na 3ª série.

O segundo ponto de crítica voltou-se à proposta de formação em tempo integral. Apesar de não haver a crítica à extensão da jornada, esta se mostra discriminatória no momento presente da sociedade brasileira tendo em vista a condição dos setores populares demandatários do ensino médio por exigências de trabalho e contribuição para a renda familiar. Favoreceria apenas determinados setores da população. A crítica também se fez a um elemento da proposição não diretamente explicitado: a extensão da jornada melhoraria a qualidade do ensino, o que não é necessariamente verdadeiro. Na mesma linha se fez a crítica à proibição de frequência ao ensino médio noturno por jovens com idade além de 18 anos.

Em função das críticas, a Comissão Especial aprovou, em dezembro de 2014, um substitutivo ao projeto inicial. Apesar das modificações introduzidas, tais como a eliminação da obrigatoriedade da jornada de tempo integral no período diurno, a inclusão das disciplinas constitutivas das áreas de conhecimento e a indicação de que estas deveriam estar presentes em todas as séries do ensino médio. No entanto, a redação de pelo menos dois artigos do substitutivo indica que a perspectiva da segmentação do currículo por meio das “opções formativas” não desapareceu, mas apenas mudou de figura, assim como não desapareceu a possibilidade da formação profissional de nível técnico como uma delas. Tal perspectiva coloca em questão  a formação integrada de caráter omnilateral pela segmentação curricular que estabelece.

Em função da situação enfrentada pelo país a partir de 2015, tanto por conta da crise política quanto da econômica, o debate sobre os destinos do ensino médio entraram em compasso de espera, mas não as ações empresariais a respeito. O foco da discussão atual no âmbito da educação, que encampa os diferentes níveis da educação básica, é a constituição da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que introduz na organização curricular a revivescência, de forma direta ou indireta, da perspectiva de formação por competência que vigorou durante o governo FHC, da qual, aparentemente, o CONSED (Conselho de Secretários da Educação) não diverge. A BNCC é também objeto de muitas críticas em função do grau de especificação e direcionamento de suas diretivas educacionais. Recentemente, o CONSED  apresentou sua visão a respeito do substitutivo do Projeto de Lei 6840/2013. Nesta, introduz dois parágrafos que se referem à modificação do artigo 36 da LDB os quais definem que o ensino médio poderá ser “organizado por módulos e adotar o sistema de créditos ou disciplinas com terminalidade específica, observada a Base Nacional Comum Curricular bem como certificar a conclusão de etapas com terminalidade específica”, proposição que, conforme a interpretação que lhe for dada, poderá significar a retomada das “opções formativas” presentes na versão original do PL 6840/13, hipótese que não pode ser desconsiderada se levado em conta o posicionamento atual da entidade a respeito do ensino médio”: “o Consed propõe: um novo modelo de ensino médio a ser adotado por todos os sistemas de ensino que considera trajetórias flexíveis na formação do estudante envolvendo opções de aprofundamento e formação das áreas de conhecimento bem como educação técnica profissional”.

Como é possível constatar, os riscos de um retrocesso na configuração do ensino médio, são significativos não apenas em função do que já estava em curso mas também da atual conjuntura política que o país vive neste momento e da onda conservadora que prevalece no contexto social.