Entrevista com Isabele Batista de Lemos (UFPA)| artigo RBE n.71 |"Narrativas de cotistas raciais sobre suas experiências na universidade"

A edição n.71 da Revista Brasileira de Educação (RBE) será publicada em três módulos em 2017 - a primeira e segunda parte já estão disponíveis na plataforma SciELO, a terceira será lançada no início de dezembro. Dentre os trabalhos presentes no próximo bloco, estará artigo de autoria de Isabele Batista de Lemos (UFPA), intitulado "Narrativas de cotistas raciais sobre suas experiências na universidade". Confira entrevista com a autora:

Qual a importância de cotas raciais não vinculadas às cotas sociais? 

Os estudos disponíveis sobre as desigualdades raciais no Brasil apontam que existe um desnível de renda, de educação, de habitação, de saúde etc. entre a população branca e a população negra. Ou seja, as desigualdades sociais no Brasil têm um fundamento racial, em virtude de causas históricas e sociais. Medidas de ação afirmativas que levam em conta unicamente o critério racial, desvinculado do critério socioeconômico, são importantes no sentido de se colocar em evidência a questão racial, reconhecendo-se as influências próprias do racismo na desigualdade de oportunidades entre os estudantes. A combinação do critério racial com o critério socioeconômico termina por reduzir o racismo à pobreza, confundindo a questão racial com o fenômeno da desigualdade social.

A primeira universidade federal brasileira a reservar vagas para alunos negros foi a Universidade de Brasília, em 2004, e o sistema adotado utilizou somente o critério racial. As cotas nessa instituição foram direcionadas aos negros, no claro intuito de mudar-se o perfil de exclusão racial no ambiente acadêmico. O projeto inicial para implantação do sistema de cotas na Universidade Federal do Pará inspirou-se no modelo da UnB. Todavia, a proposta foi aprovada com modificações, vinculando-se a cota racial à cota para escola pública, o que minimizou o caráter essencialmente antirracista da proposta, como podemos perceber na fala dos estudantes entrevistados. 

 

Em seu texto é exposto a dificuldade de se falar sobre racismo, e a necessidade de se vincular, constantemente, cotas raciais à cotas sociais. Em sua opinião por que isso acontece? 

A proposição de ações afirmativas para a população negra brasileira trouxe a temática racial para o centro do debate, por se tratar de uma proposta concreta para combater a perpetuação das desigualdades raciais. Nesse processo, não faltaram reações contrárias a tais políticas, e as tensões raciais que o discurso da democracia racial diz não existirem ficaram cada vez mais expostas. A crença de que a intensa miscigenação brasileira produziu relações raciais harmoniosas e igualitárias é absolutamente ilusória, pois o que constatamos é um tratamento racial hierarquizado, manifestado em práticas discriminatórias na educação, no mercado de trabalho, nas situações do cotidiano. É difícil falar sobre racismo no Brasil por causa desse discurso de que no Brasil não haveria racismo ou, pelo menos, não no nível em que ocorre nos Estados Unidos. Apesar de não ter se desenvolvido oficialmente no Brasil um sistema discriminatório segregacionista como ocorreu nos Estados Unidos, isso não significa que aqui o racismo e o preconceito deixaram de influir decisivamente na dinâmica das relações sociais. Os relatos dos estudantes nos mostram que eles enfrentam o preconceito racial de variadas formas no ambiente acadêmico.

 

Atualmente uma das bandeiras das universidades públicas brasileiras é a luta por uma "universidade gratuita e de qualidade", contudo o acesso à universidade ainda não é para todos. Na última década, outros programas de expansão da universidade, além das cotas raciais e sociais, foram criados, como o REUNI, que também teve forte resistência. É possível fazer um paralelo entre esses movimentos de rejeição, de resistência? Por quê?

Penso que sim, considerando que as universidades públicas brasileiras sempre foram espaços destinados a poucos privilegiados, isto é, aqueles que tiveram condições de estudar em escolas de boa qualidade (em regra, privadas). Os sistemas de cotas mudaram um pouco esse quadro, ao incluírem estudantes de baixa renda, de escola pública e/ou negros ou indígenas nas salas de aulas. Por sua vez, a expansão da oferta de vagas nos cursos, prezando-se pela manutenção da qualidade do ensino, também é importante nesse processo de democratização da universidade. São políticas que, de fato, enfrentam resistências. Nos cursos mais concorridos, como Medicina, onde se encontram estudantes oriundos de camadas mais favorecidas economicamente e, em sua maioria, brancos, há uma resistência ainda maior aos sistemas de cotas. Por trás dessa resistência, permeia um sentimento excludente de que aquele lugar, a universidade, não pertenceria aos cotistas. O direito de todos à educação superior pública gratuita e de qualidade exige a democratização de seu acesso para ser efetivado.

 

Alguns programas de pós-graduação têm aderido ou, ao menos, iniciado o debate sobre cotas. Como você enxerga esse movimento? 

O debate atual sobre cotas na pós-graduação é muito relevante, na medida em que se busca democratizar também o acesso à pós-graduação, onde o número de negros e de negras ainda é muito baixo. Esse movimento reflete o contexto normativo brasileiro, que se orienta no caminho da promoção da igualdade racial por meio de diferentes políticas públicas. A participação do Brasil na  Conferência de Durban, na África do Sul, em 2001, promovida pela Organização das Nações Unidas, representou um marco na discussão sobre ações afirmativas para a população negra no país. No Relatório que levou para a Conferência, o Estado Brasileiro reconheceu perante a comunidade internacional a existência do racismo institucional em nosso país e das profundas desigualdades nas condições de vida de brancos e negros, comprometendo-se a adotar medidas para a superação desse quadro, dentre elas, ações afirmativas na educação e no trabalho. Neste sentido, só para citar como exemplos, tivemos a promulgação da Lei n. 12.711 de 2012, que estabeleceu cotas raciais nas universidades e institutos técnicos federais, e, posteriormente, a Lei n. 12.990 de 2014, que prevê cotas raciais no acesso ao serviço público federal. As cotas são necessárias quando há uma efetiva desigualdade no acesso a bens fundamentais (como educação, trabalho); no caso da população negra, os efeitos perversos do racismo não lhe permite competir em igualdade de oportunidades no acesso a esses bens.

 

 

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