A experiência radical de ocupar a si mesmo

Marília Pinto de Carvalho
Faculdade de Educação da USP

Acompanhei com surpresa feliz a primeira onda de ocupações em São Paulo. Começou no dia 9 de novembro de 2015, em três escolas da Grande São Paulo e em poucos dias eram mais de 200, espalhando-se por todo o estado. A mobilização visava barrar uma reforma decidida nos gabinetes, que implicaria no fechamento de 94 escolas, na demissão de professores e funcionários, além do deslocamento de 310 mil alunos, muitas vezes para longe de sua moradia. As escolas passariam a receber apenas alunos de um ciclo (fundamental 1, fundamental 2 ou ensino médio) e mesmo aquelas que não fossem “reorganizadas” sofreriam o impacto, pois teriam de acolher mais estudantes em suas classes já abarrotadas. Tudo indica que os objetivos dessa “reorganização” seriam implantar uma gestão de estilo empresarial e preparar as escolas para ser transferidas à iniciativa privada.

Assim que souberam desse plano, estudantes – e secundariamente professores e pais de alunos – começaram a se mobilizar. Desde o início de outubro, houve abaixo-assinados, reuniões com dirigentes locais de ensino e manifestações, sem qualquer resultado. Reeleito com grande maioria de votos em 2014, o governador Geraldo Alckmin (PSDB) parecia estar muito seguro de que podia fazer qualquer coisa sem ser contestado: os professores da rede estadual vinham de uma longa greve, da qual saíram derrotados; e o governo, assim como quase todos os atores da vida política e educacional, desconhecia o grau de insatisfação e a capacidade de luta dos estudantes.

Mas parte desses alunos tinha experimentado sua força coletiva nas grandes mobilizações de junho de 2013 contra o aumento das passagens de ônibus e metrô, que começaram em São Paulo, exatamente nas escolas. Já em 2015, ao longo dos meses de mobilização contra a reforma escolar, a palavra de ordem “se fechar, nóis ocupa” se espalhou entre os jovens que divulgaram nas redes sociais o movimento dos estudantes chilenos e argentinos (Como ocupar um colégio?). Com base nessas referências, eles se organizaram sem hierarquias, fazendo assembleias diárias e trabalhando em comissões rotativas, responsáveis pela limpeza, cozinha, segurança, comunicação, atividades culturais.

Além de resistir, dentro das escolas ocupadas, à repressão policial direta ou disfarçada e às ameaças dos diretores, os estudantes decidiram a partir do final de novembro ocupar também as ruas. Diariamente muitos pontos nodais do trânsito foram bloqueados, em diferentes horários. A polícia reprimiu violentamente esses ”travamentos”, tentando caracterizar os manifestantes como baderneiros, estratégia que não deu certo. O governo esperava que a população se colocasse contra as manifestações, por ter de ficar parada em grandes engarrafamentos, mas isso também não ocorreu e, de acordo com pesquisas de opinião, 60% da população de São Paulo se colocaram a favor da luta dos estudantes.

                                                        

Finalmente, no dia 4 de dezembro, após 25 dias de ocupação de escolas e protestos de rua, o governo do estado de SP suspendeu a reorganização das escolas e o secretário de educação foi demitido. Ainda que haja indicações fortes de que a reforma vem sendo feita de forma velada ao longo desse ano de 2016, os estudantes paulistas sem dúvida foram vitoriosos.

A maior vitória, contudo, parece estar além da luta imediata e da suspensão de uma política privatista da educação pública. Todos nós testemunhamos o grau de organização, criatividade e aprendizagem deste movimento. Os alunos limparam, consertaram, pintaram paredes, capinaram mato, num trabalho de manutenção que o Estado deveria garantir e não era feito há anos. Ao abrir almoxarifados, frequentemente encontram pilhas de materiais didáticos que estavam empoeirando ao invés de serem usados.

                                                               

Mas suas atividades foram muito além dos trabalhos braçais, na medida em que organizaram agendas diárias de aulas abertas, rodas de conversa, campeonatos esportivos e atividades culturais, com o apoio de professores, artistas e intelectuais, de grupos organizados e de coletivos de cultura. Mesmo as escolas da periferia mais pobre e distante foram abraçadas pelos grupos locais de cultura e debate político.

                                                                      

Assim, escolas com cara de prisões – com grades e muros altos, mal conservadas e sujas - tornaram-se coloridas, plenas de vida e de atividades significativas. Estão documentados debates sobre política, movimento estudantil, meio ambiente, povos indígenas e quilombolas, entre tantos outros; apresentações de filmes, música, dança, capoeira, teatro, circo; leitura de poesias, troca de livros, saraus; oficinas de vídeo, estêncil, pintura, grafite, instrumentos musicais, yoga, expressão corporal, skate; aulas de matemática, inglês, história, redação - sim, aulas, porém num formato livre e participativo, muito diferente do que eles estavam habituados. Os estudantes usaram intensamente as tecnologias de informação: cada ocupação criou páginas nas redes e nelas se pode encontrar diários escritos a cada dia por alunos e alunas diferentes; vídeos com depoimentos e cenas; desenhos e cartazes; paródias e apresentações de música. São expressões emocionantes de todo tipo de aprendizagem: de convivência, organização, autonomia, tomada de decisões, vida coletiva, além de leitura, escrita e reflexão. Eles e elas tomaram a palavra e tinham muito que dizer.
Páginas: Ocupação Salvador Allende Secundas Jose Lins

                                                         

Com isso, certamente nossas escolas jamais voltarão a ser as mesmas após as ocupações.

O mais importante, entretanto, é que nenhum de nós voltará a ser o mesmo, em especial aqueles e aquelas que viveram por semanas dentro das escolas ocupadas. Visitei uma delas na tarde do primeiro dia de ocupação. Um rapaz de 16 anos me relatou que haviam dormido em colchonetes, acordado cedo, tomado café e limpado tudo. Fizeram sua primeira assembleia, se dividiram em comissões e então ele percebeu que ainda eram 9 da manhã. Eles tinham o dia todo pela frente, para preencher como inventassem e estavam ainda descobrindo como fazê-lo. Na hora não captei toda a dimensão desse depoimento, mas fiquei com a cena na cabeça.

Era como se o pedido do poeta Drummond tivesse se realizado: “para o mundo que eu quero descer”. O ritmo predefinido da rotina estava em suspensão, a experiência do tempo e do espaço era outra. Não havia o horário de chegar na escola, a sucessão de aulas, o intervalo, obrigações em casa. Não havia o fluir das coisas definido externamente - por adultos, pela aprendizagem da exploração, pela propaganda, pelo ritmo das mensagens nas redes sociais. Não era preciso produzir, consumir, competir, se exibir, prestar contas. Eles e elas eram livres para reinventar coletivamente suas vidas. Puderam tomar decisões em conjunto, aprenderam a conversar, ouvir, respeitar, resolver divergências. Descobriram talentos que nem imaginavam ter, coragens insuspeitas. Puderam ir além do individualismo, inventaram coletivos, questionaram todo autoritarismo. Não por acaso, os debates sobre feminismo, racismo e homofobia estiveram presentes com força nas escolas. Alunos e alunas ocuparam a si mesmos. Puderam dar sentido a suas vidas, a cada hora de suas vidas. Puderam ter esperança e imaginar um futuro. Não foi pouco e não será fácil de apagar.