Liberdade

Antonio Carlos Rodrigues de Amorim
Faculdade de Educação da Unicamp
Integrante do GT Currículo da ANPEd

Os tempos atuais têm nos deixado em estado de alerta ou, como se escuta aqui e acolá, na necessidade de vigilância contínua. Interpelação exigida pelas dobras que arrebatam os espaços plurais, divergentes e marcados pelo dissenso que, em certa medida, esboçam algumas imagens da democracia que ganha corpo e forma em um campo de forças descontínuo e fraturado. Nós, que atuamos no campo da educação, vemos com muito pouco otimismo essa condição contemporânea – especialmente quando perspectivada pelas políticas públicas centralizadas nos governos municipais, estaduais e federal. Não obstante, reagimos. E essas reações, muitas vezes, têm sido marcadas por retomada de palavras, princípios, ideias e utopias que atravessam e adensam o campo da educação há anos. Recolocá-las na ‘ordem do dia’ é, com frequência, o que estaria sendo nomeado de resistência. Nesse movimento, temos sentido menos o peso da solidão de uma luta que, embora coletiva, não alcançara a expressão de sentimento do mundo. Ora, não é mesmo cruel a distância entre o que pensamos construir como significados reconhecíveis e a realidade que escorre por nossos dedos, que nem mesmo apreende os objetos que construímos com sentidos supostamente já tão negociados?

Em vários momentos de desilusão frente aos acontecimentos, a guinada para uma posição agente/ativa ao invés de reativa foi importante para a emergência tanto de outras políticas e quanto éticas. Por exemplo, na história do cinema e da literatura não são raras as passagens com as quais poderíamos aprender a resistir. No caso dessas artes, o que é notável é que a resistência criou outros possíveis ao ficaram longe da reificação sufocante das instituições, apostando em traçar trajetórias que fugissem dos seus discursos e posturas unitárias e segmentárias. O que fizeram/fazem é dedicar atenção e desejo àquilo também ao que já preexiste, como se fossem linhas rastreadas por nós. Tal dimensão ética indica que somente valeria a pena seguir hoje um tipo de resistência na/pela educação que promete fazer-nos dignos do acontecimento.  O acontecimento que não é de nossa própria fabricação, como fato dado, desiludido e triste. Mas, resultante de um processo de contra-realização que é sem dúvida a dos nossos rastros.

Talvez esse sussurro de fendas que se abririam à percepção da resistência, aprendidos tanto nas artes quanto na filosofia, possa nos recolocar frente aos nossos rastros na educação, e como linhas que ensaiam rabiscos informes, retomarmos a potência de agir. As ocupações das escolas públicas, incluindo universidades, por estudantes, em diferentes estados do Brasil, são um convite para que nos forcemos a ser dignos do acontecimento.
 
Os estudantes nos trazem à pele a diferença do tempo, esse vacúolo gigante e intempestivo. A impossibilidade de professor e aluno dizerem e se colocarem a partir um tempo único tem sido uma das mais belas imagens da educação, tanto em seus valores estéticos, éticos e políticos. O esforço da educação institucionalizada em criar um tempo comum é enigmático. Bem como o são as forças e lutas e desvios e invenções de perfurar esse tempo e agir desde dentro dele.

                                                                   

Os estudantes, ao ocuparem as escolas e as universidades, extraem de nós, professores e pesquisadores, as linhas amanhecidas em um lugar de outrora. É interessante pensar que, dessa forma, operam na liberação do passado em nós. Se olhamos para nós mesmos, agenciados pelos acontecimentos das ocupações dos espaços públicos de educação, lançamo-nos nos traços dos estudantes em busca da liberdade que concerniria naqueles momentos na vida após os quais um não é mais a mesma pessoa que era antes.

O tipo de liberdade que é manifesta numa ruptura desse tipo não pode ser capturada nos conceitos liberais ou humanistas de liberdade negativa ou positiva, uma vez que eles definem liberdade em termos da capacidade subjetiva de agir sem obstáculo na busca de suas finalidades ou em termos de sua capacidade de satisfazer seus desejos mais significativos.

Com o que venho aprendendo com os escritos de Gilles Deleuze e Félix Guattari, a liberdade que os estudantes ensinam com as ocupações das escolas e das universidades refere-se à capacidade de mudança ou transformação dentro ou entre os agenciamentos. E viver nesse dentro ou entre trata-se de abrir-se a singularidades múltiplas, insinuadas nas transições abruptas e irreversíveis através das quais o indivíduo transforma-se em uma pessoa diferente e, eventualmente, a nova pessoa encontra novas coisas com que se importar, que a fazem mover-se no mundo.

Residua-nos a questão de se é preciso afirmar e dar voz e dar visibilidade ou proteger ou garantir direitos ou transformar em política universal tal sentido de liberdade que é bastante ambivalente. Não se pode dizer de antemão onde esses processos de mudança e mutação podem levar. Não se trata somente da incerteza, apregoada em vários de nossos escritos, pouco nos deixamos de fato contaminar com seus sentidos mais profícuos. Trata-se da liberdade como um encontro indiferente aos desejos, preferências ou objetivos do sujeito na medida em que podem ameaçar ou avançar qualquer uma das premissas e garantias.
 
Fazermo-nos dignos do acontecimento parece ser uma das etapas da constituição de um novo comum, uma dimensão estética da política na possibilidade constante de uma reconfiguração das relações entre fazer, dizer e ver que circunscrevem o “ser em comum”. Seguindo, neste momento, o que nos propõe Rancière, as ocupações dos espaços educativos públicos por estudantes abrem a ferida da liberdade como ruído  às ordens discursivas dominantes que se constituem em uma comunidade política que interage não para alcançar o entendimento, mas para tornar evidente um desacordo sobre a partilha de tempos, espaços e vozes.