A luta pela educação pública e de qualidade

por Julia Neves - EPSJV/Fiocruz (acesse a notícia original)

Durante cinco dias, cerca de duas mil pessoas se reuniram na 39ª Reunião Nacional da Anped para discutir os ataques à educação e as formas de resistência frente ao desmonte

Camilla Shaw

Foto: Camilla Shaw

Sob o tema ‘Educação Pública e Pesquisa: ataques, lutas e resistências’, a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped) comemorou seus 40 anos de existência, celebrando a educação pública e a pesquisa em sua 39ª Reunião Nacional, realizada entre os dias 20 e 24 de outubro, na Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói. Durante cinco dias, cerca de dois mil professores, pesquisadores e estudantes participaram de uma ampla programação que contou com minicursos, painéis temáticos e sessões de debate. O objetivo do evento, segundo a organização, foi inspirar uma reunião plural que marca o compromisso histórico da Associação com o direito à educação, à escola pública, à pesquisa crítica, rigorosa e comprometida com a justiça social e a democracia.

Falácias do ajuste fiscal

Os impactos sociais da austeridade fiscal foram discutidos durante a reunião. Segundo Pedro Rossi, professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), as reformas propostas pelo governo federal, como a da Previdência e o congelamento do gasto até 2036, são equívocos e aprofundam a crise. “No momento em que se começa a cortar gasto público, a economia desanda e a dívida pública aumenta. Não existe excesso ou aceleração dos gastos”, afirmou.

Para ele, dizer que ‘o Estado quebrou’ é uma falácia. “A metáfora 'acabou o dinheiro do Estado' é mentira. É como se o Estado não tivesse incluído no espírito democrático e não pudesse reorganizar esses recursos. O dinheiro acaba quando a gente não tem controle sobre ele. Cabe à sociedade decidir o quanto o Estado vai gastar”, defendeu, reforçando que o dinheiro que o governo gasta faz a economia circular: “O gasto público influencia no desenvolvimento econômico. Todo gasto é receita de alguém, o que eu gastar alguém vai receber... É um ciclo”.

Foto: João Marcos Veiga (ANPEd)

A crise é o momento de o Estado investir, sentenciou Rossi: “Estamos presos a uma ideia equivocada. Mas ela não é irracional porque atende a determinados interesses do setor privado. Do ponto de vista da economia política, tem gente que ganha e gente que perde. Isso faz parte de um projeto de país no qual o governo tem uma parte menor e o setor privado, a parte maior”.

O único motivo de colocar na Carta Magna uma regra como a Emenda Constitucional 95, garantiu Rossi, é a desvinculação dos pisos mínimos de saúde e da educação, proposta que deve chegar em breve ao Congresso Nacional. “A EC 95 garante uma redução do tamanho do Estado ao longo do tempo. O que essa reforma fiscal faz é mexer no gasto social do país, e isso pode levar o Brasil a uma explosão a la Chile ou até pior”, alertoum citando os protestos populares que acontecem no país vizinho.

Crise do capital

Desde o final da década de 1960, emergiu um novo padrão de acumulação capitalista centrado nas instituições financeiras, apontou Luiz Fernando Reis, professor da Universidade Federal de Goiás (UFG). “No Brasil, a política econômica em curso desde a década de 1990, por meio do ajuste fiscal, viabiliza a drenagem de recursos orçamentários para garantir a rentabilidade do capital, especialmente na esfera financeira”, contextualizou.

Para Reis, a dívida pública há muito tempo funciona como mecanismo para o Estado enxugar a oferta de política social. “Ela é, fundamentalmente, um mecanismo para viabilizar a rentabilidade do capital financeiro. O escoamento de grande parte do fundo público para o pagamento das despesas com a dívida pública resulta numa redução estrutural de recursos disponíveis ao financimaneto das políticas sociais, das universidades federais e da ciência e tecnologia”.

Ele citou números: no período de 2003 a 2018, foi destinado, em média, 19,1% do orçamento da União para o pagamento de juros e amortização da dívida. Enquanto isso, 3,9% foram para a saúde, 3% para a educação, 3,5% para despesas sociais diversas e apenas 0,35% para ciência e tecnologia. “Se você junta tudo isso dá 9,8% em média nesses anos todos. Ou seja, se gastou o dobro com juros e amortização. Então o problema do país não é o gasto social, é a dívida. É a rentabilidade do capital financeiro – e o Estado vive para atender a isso”, apontou.

Privatização e Future-se

Muito criticado por pesquisadores, movimento estudantil, sindicatos docentes e movimentos sociais, o Programa Future-se – apresentado pelo Ministério da Educação em 17 de julho – foi lembrado durante a reunião. Segundo a professora da UFF, Andréia do Vale, a iniciativa acentua a tendência de privatização da educação pública brasileira. “Ele abre a porteira para que mais fundo público seja dirigido ao setor privado e dá espaço para a acumulação de capital dentro das instituições públicas, principalmente no campo da gestão”, criticou, destacando o papel  das organizações sociais (OSs) e das fundações de apoio no programa. “Isso que a gente chama de privatização, empresariamento e mercantilização da educação superior está posto de forma mais articulada pelo Future-se. É uma iniciativa de caráter autoritário, um ataque à educação pública e à comunida acadêmica”, lamentou.

Apesar de o programa ser novo, a privatização na educação não é novidade. De acordo com Vale, desde a década de 1970, empresas de educação avançam sob o guarda-chuva da filantropia. “Isso significou um imenso processo de renúncia e isenção tributária, previdenciária e fiscal”, observou. Mas a consolidação mais recente de quatros grandes grupos educacionais no país – Ânima, Estácio, Kroton e Ser educacional – introduziu uma lógica financeirizada a esse cenário. A consequência, segundo ela, é uma mudança no ethos – conjunto dos costumes e hábitos fundamentais – na educação superior. “Vemos a transformação da educação em mercadoria, uma mercadoria como outra qualquer”, apontou, argumentando que esse processo implica uma total reconfiguração da natureza do trabalho docente e das condições e relações de trabalho nas instituições de ensino.

Educação de Jovens e Adultos

Paradigmas, políticas públicas e currículo da Educação de Jovens e Adultos (EJA). As temáticas  nortearam as discussões de um dos painéis da reunião. Para a pesquisadora da Universidade Federal de São Carlos (UFScar), Jarina Fernandes, a EJA deve acontecer com e não somente para os estudantes. “Precisamos dialogar a fim de atingir novos patamares de construção curricular com a participação dos diferentes sujeitos e não para eles”, ressaltou, citando pesquisa que mostrou como as expressões ‘jovens e adultos’, ‘educação permanente’ e ‘educação ao longo da vida’ aparecem em documentos do Ministério da Educação que tratam da EJA, a exemplo das Diretrizes Curriculares Nacionais para a EJA.

Ao lado da pesquisadora Adriana Pereira, também da UFScar, Fernandes disse que observou no documento  do MEC que o conceito de educação permanente, por exemplo, aparece como abordagem de destaque. Segundo as pesquisadoras, a expressão está relacionada às funções reparadora, equalizadora e qualificadora da EJA. “A educação permanente influenciou as primeiras conferências de Educação de Adultos, evidenciando uma possibilidade de formação para transformação e emancipação de sujeitos”, disse Pereira.

Fernandes acrescentou: “Ainda que, a partir de meados do século 20, a educação permanente tenha passado a ser associada ao paradigma da educação ao longo da vida, é significativo que o relator do documento, Jamil Cury, tenha utilizado apenas educação permanente nas diretrizes, sem menção à concepção de educação ao longo da vida, já usual naquele momento”. Ela destacou que o paradigma da educação ao longo da vida orientou as políticas de EJA a partir dos anos 2010.

Pereira ainda chamou atenção para o fato de o conceito de educação popular não aparecer explicitamente nos documentos analisados. “A ausência não condiz com a influência que ela exerceu na construção das propostas da EJA, alinhadas à formação integral, na perspectiva crítica e de transformação social”, destacou.

Por sua vez, Fernandes defendeu que, ao tratar da modalidade nos países empobrecidos, é preciso considerar sujeitos que viveram e vivem diferentes histórias de exclusão da escola e, comumente, de exclusão do acesso aos direitos humanos fundamentais. Para ela, em contextos de privatização da educação, só interessa a educação que gere lucro, daí a importância de explicitar paradigmas e defender o direito de todos à educação pública e de qualidade. “Ao longo dos anos, a gente vai vendo um deslocamento de intencionalidade através dos conceitos, que são polissêmicos. Com o desenho das políticas neoliberais, a gente vai se direcionando para uma tendência de desreponsabilização do Estado pela educação, passando isso para o colo dos sujeitos”, analisou. E complementou: “É o que acontece no cenário do aumento de matrículas de educação a distância na EJA. Você diz que o sujeito não quis frequentar o presencial, como se a EaD fosse uma modalidade apropriada para um grupo que não tem autonomia para acompanhar um processo descentralizado”.

EJA no Plano Nacional de Educação

Num balanço de cinco anos do Plano Nacional de Educação (PNE), as pesquisadoras Sandra Leite e Nima Spigolon, ambas da Unicamp, analisaram as metas e lamentaram a invisibilidade da EJA nas políticas públicas. “Mesmo com todas as desconstruções, a gente precisa estar atento ao PNE porque ele é o que ainda está presente”, afirmou Sandra, destacando sua efetivação através dos planos municipais e estaduais de educação. “Mas se olharmos as 20 metas do Plano, verificamos que não existe meta específica para a EJA. Na verdade, ela permeia diversas metas, como as 8, 9 10”, citou Leite. 

Segundo a pesquisadora, a meta 8 – “Elevar a escolaridade média da população de 18 a 29 anos, de modo a alcançar no mínimo, 12 anos de estudo no último ano de vigência deste plano” – dialoga fortemente com a EJA. Assim como a 9 – “Elevar a taxa de alfabetização da população com 15 anos ou mais para 93,5% até 2015 e, até o final da vigência deste PNE, erradicar o analfabetismo absoluto e reduzir em 50% a taxa de anafalbetismo funcional”. “A gente tem um número significativo de pessoas que não concluíram o ensino fundamental. Então essa meta 8 dialoga fortemente com a EJA, mas segundo o relatório da semana de ação mundial do PNE, ela não foi cumprida. A relação da EJA com a Meta 9 é ainda mais nítida. Com o desmonte do [programa] Brasil Alfabetizado, essa meta fica à mercê. Ela sufoca o princípio da modalidade, uma vez que você não tem mais estruturas para essa manutenção”, apontou.

Leite destacou também algumas críticas em relação à meta 10, que trata da integração da EJA com a educação profissional, que permite a concomitância entre ensino regular, numa escola, e profissional em outra. “Muitas vezes não há um projeto político-pedagógico comum, nem uma interação entre os professores que trabalham nesses diferentes espaços”, alertou.

Para traçar um histórico da criação do PNE, Spigolon contextualizou que o Brasil viveu curtos espaços de democracia, sempre interrompidos violentamente por “golpes”. Entrentanto, a pesquisadora apontou que o Plano traz uma experiência muito emblemática de espaço democrático. “Embora reconheçamos de modo muito crítico a invisibilidade da EJA, o PNE foi uma experiência de construção democrática. Foi um processo longo, que envolveu instâncias municipais, estaduais e nacional até a sua criação e a EJA foi se fazendo representada nessas diversas instâncias”, relembrou. E acrescentou: “A proposta de construir um plano nacional de educação é um exercício de cidadania. Mas para termos avanços significativos, o PNE tem que deixar de ser uma política de governo e ser uma política de Estado”.