Ocupar As Consciências - Ocupação Escola Técnica A 131. Comuna de Buin. Chile.

Marcela Betancourt Sáez (doutoranda em Educação - UFF)
René Varas González (mestrando em Políticas Públicas e Formação humana - UERJ)

No dia 19 de julho do ano de 2011, depois de dois meses de mobilizações, greve e atividade na rua, no contexto das mobilizações que protagonizaram os estudantes chilenos tanto secundaristas quanto universitários, um grupo de nove estudantes da Escola A 131, da comuna de Buin, a menos de 50 quilômetros de Santiago, a capital do país, deu inicio a uma greve de fome que se estendeu por mais de trinta dias. Eles pediam dignidade para estudar e o fortalecimento da educação pública, valor que começou a perder-se no Chile desde a ditadura cívica militar dos anos 70-80 (RUIZ 2012). Os elementos centrais foram gratuidade, fim do lucro na educação, qualidade, vale-transporte nacional para ano todo. Além disso, os estudantes fizeram reclamações em relação às condições físicas das escolas - os banheiros não funcionavam, as janelas não tinham vidro, faltavam professores, nos salões chovia, só por dar exemplos da precariedade com que esses jovens viam-se obrigados a estudar. Nas próprias palavras deles, sua luta foi em beneficio das futuras gerações e conquistou muito apoio da população com inumeráveis mostras de adesão e engajamento.

O real triunfo da Ditadura de Pinochet foi a privatização do país. Foram privatizadas empresas estaduais, recursos naturais, a saúde (REBOLLEDO 2015). A educação foi privatizada também. E para isso, a ditadura buscou acabar com a educação pública. O Estado não é mais um provedor da educação, só um financista que paga uma tarifa mensal por estudante, e são os municípios quem administram as escolas públicas, sem contar com as condições mínimas necessárias para uma gestão eficiente. Assim se abriu o terreno para um perfeito negócio da educação. O Estado garante apenas uma particular versão da liberdade de ensino: qualquer pessoa pode montar uma escola com aquilo que se define como financiamento compartilhado (BELLEI 2013). Então, essa pessoa pode cobrar ao Estado e à família pela educação de cada estudante, para sustentar essa escola e lucrar. Assim os estudantes e suas famílias convertem-se nos clientes e a educação é coisificada de maneira mercantil com amparo do Estado.

                                                                    
                                                                                                                                                                                                Foto: La Segunda

Os sustentadores (donos das escolas) utilizam as melhores (ou piores) fórmulas para lucrar. Assim aparece a má utilização dos fundos: turmas com mais de 50 estudantes, listas falsas de estudantes (para cobrar por eles), precarização de salários dos professores, condições precárias dos estabelecimentos que não são renovados nem se investe neles. Quando um país transforma um direito humano num objeto de lucro, a sociedade toda se transforma, já não se pode ascender a esse direito em igualdade de condições, pois ao mercado se ascende pagando distintos preços segundo a qualidade do produto e a capacidade da família. Então num país com um índice altíssimo de segregação social, desenvolve-se um dos sistemas de educação mais segregados do mundo e aprofunda-se assim as desigualdades.

Acabada a ditadura, a lei de financiamento compartilhado foi fortalecida e legitimada. A segregação aumentou, se aprofundou. A situação chegou a ser tão dramática que foram os estudantes quem saíram às ruas, primeiro na nominada "revolução pinguinha" de 2006, e depois em uma verdadeira avalanche de mobilizações em 2011. Foi essa situação de precarização da educação pública que fez com que se desencadeasse a greve de fome em Buin.

Para os adultos que, apavorados, solidarizaram-se e acompanharam a causa, a aprendizagem foi clara, os estudantes estavam dispostos a tudo, embora isso fosse atentar contra sua própria vida. É tão grande a frustração, o sentimento de injustiça, e tão violenta a segregação, tão desiguais as condições e os resultados na educação segundo a classe social a que se pertence, que eles sentiam que já não havia nada a perder. Para o mundo adulto, a maior aprendizagem foi a de que havia chegado uma nova geração, com vontade de lutar para mudar o Chile. Mas é uma dor muito profunda que os jovens tenham disposição de arriscar sua vida para não ter por herança o país que os adultos oferecem.

Para os meninos a aprendizagem foi diferente, eles fizeram uma resistência profunda para manter sua trajetória. Como sujeitos sociais, queriam ser protagonistas, participar, decidir. Em resumo, aquilo que precisavam era de um país democrático. Então o primeiro aprendizado foi que eles são cidadãos, que merecem espaços de participação. É um saber sem dúvida doloroso, a desigualdade social com que se construiu o Chile, que produziu uma profunda desigualdade na educação. Eles convivem com a desigualdade dia-a-dia e sabem que por sua causa têm poucas oportunidades para decidir sobre suas vidas, eles são a periferia. Então, já não é a mesma coisa quando uma pessoa simplesmente vive sua segregação, que quando mesmo vivendo é consciente dela, acredita que não é justa e decide que não quer continuar sendo um cidadão de segunda classe. Existe aqui uma aprendizagem dialética. Os jovens aprenderam sobre a realidade da desigualdade na educação, e ao mesmo tempo sobre sua negação igualitária: o direito à educação. Eles fizeram a greve de fome por acreditarem que tinham direito à educação e seu próprio país estava negando isso.

                                                                     
                                                                                                                                                                                        Foto: Frente Fotográfico

Essas aprendizagens têm duas relações interessantes de serem estudadas. O primeiro aprendizado é ligado à desigualdade. Assim eles enfrentam-se com o significado de ser de uma classe social que para esse país não merece ter todos os direitos, que outros gozam como privilégios. Eles reconhecem-se como os oprimidos do sistema e se engajam na luta por libertar-se (FREIRE 2014). 

A outra aprendizagem tem a ver com o direito à educação, com reconhecer que não pode ser um privilégio ter acesso a uma educação de qualidade. Essa aprendizagem está vinculada com a utopia da igualdade de direitos. Em um horizonte de definição de uma realidade onde o exercício do direito não é diferente entre classes sociais, radicalizado na utopia moderna da liberdade e dignidade humana. Nesse sentido igualitário da educação como exercício de direito fora da submissão da sociedade desigual, se constrói um horizonte utópico de respeito e garantia dos direitos. É uma aprendizagem olhando para a sociedade democrática, onde entre outras coisas a educação não é segregada e se oferece em igualdade a todos e todas.   

Mesmo os jovens permanecendo em sua greve de fome, a escola ocupada desenvolveu um currículo, ele foi libertário, de democracia e participação. Eles aprenderam sobre a História e os sistemas educativo e político do Chile. Esse currículo libertário teve a particularidade de ser construído e executado por eles e se associa a outro conhecimento que eles tiveram nessa ocupação, que tem a ver com o significado do poder, e que o currículo também é poder. Por um lado, eles compreenderam que existe um poder político de quem ostenta cargos políticos no país, que têm um financiamento e que por sua vez fazem tudo para manter a realidade da educação como ficou até aqui. Mas eles reconheceram outro poder que é ostentado por seus professores e os diretores das escolas, são eles quem decidem as maneiras com que estes jovens aprendem o currículo escolar. Mas agora já não estão dispostos e a escola precisa mudar em sua estrutura para acolher estes protagonistas desta nova história. Essa mudança vai tardar, mas são esses jovens os que iniciaram num novo caminho. Um caminho que indica que é possível se organizar e lutar pelos direitos vulneráveis, embora esses resultados sempre sejam incertos.

Referências Bibliográficas

BELLEI, C. El estúdio de la segregación socioeconómica y académica de la educación chilena. Estudios Pedagógicos. Valdivia, Chile. Volumen 39. 2013.
FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 57 edição. São Paulo. Editorial Paz e Terra. 2014.
REBOLLEDO, J. A la sombra de los cuervos: los cómplices civiles de la dictadura. Primera edição. Santiago, Chile. Editorial Ceibo. 2015.
RUIZ, C. La república, el estado y el mercado en educación. Revista de Filosofía. Santiago de Chile. volumem 68. P 11-28. 2012.