Uma escola e suas gentes em Sertão de Goiás.

Reportagem e Fotos de Camilla Shaw/ANPEd

 

Relato de nossa jornalista que acompanhou durante 10 dias a rotina da professora Del Rezende e sua família, que moram em uma zona rural do estado de Goiás, assim como a realidade da escola da região


O Sertão

Situado no norte de Goiás, Sertão é um distrito bem pequeno, com cerca de 80 famílias que vivem em suas fazendas. Fica a uma hora de distância do centro de Alto Paraíso, município do qual faz parte, este com 8 mil habitantes. A estrada que liga essas regiões é de terra, em condições perigosas para seus usuários. Na época de chuva há muita lama; no período da seca, muita poeira. É hábito entre os motoristas da região diminuírem a velocidade ao passar perto de ciclistas ou pedestres para que estes não tenham que enfrentar tanta poeira. A decisão entre vidros abertos ou fechados é uma “escolha de Sofia”, já que numa delas você morre engasgado de poeira, na outra morre de calor. O que você escolheria?

 

Sertão/GO

 

Del é apaixonada por onde mora. Ouso dizer que conhece todas as frutas do Cerrado - no carro sempre reduzia a velocidade quando passávamos por um pé de mangaba, para espiar se tinha frutinhas. Enquanto dirige, olha para aquelas árvores de troncos e galhos curvados, poucas folhas, com uma aparência de sede que se mistura com toda a secura do Sertão, dá um sorriso e diz: “mas falam que Deus escreve por linhas tortas, não é?”. Nesse momento solta uma pequena gargalhada e volta a contar suas histórias sobre a região.

 

Del Rezende

 

A escola

Del é uma professora de olhos tão grandes e brilhantes quanto seu coração. Ela não nasceu no Sertão, mas por lá não há quem não a conheça. Mora há 27 anos ali, tempo que se confunde com sua dedicação à escola da região, desde que foi convidada pelo prefeito de Alto Paraíso para assumir a pequena turma, que estava sem nenhuma professora ou merendeira, já que todas as anteriores haviam abandonado o local. Na época era ela, uma salinha e uns 40 alunos. Já contou com mais de 140 alunos e hoje são mais de 70 estudantes e um quadro de mais ou menos 20 funcionários em dois prédios - um maior com as salas de aula, outro com a área administrativa, sala dos professores, cantina, biblioteca e sala de vídeo.

A escola do Sertão leva parte do nome da fazenda em que se encontra: Escola Municipal Santo Antônio da Parida. Enquanto diretora, Del diz que priorizou uma gestão participativa e democrática. Organizava reuniões semanais de professores, para motivar a troca e o diálogo entre eles; eram feitas pesquisas com os alunos, nas quais eles se avaliavam toda a estrutura da escola, professores, funcionários, aulas,lanche e espaço; entre outras iniciativas. A experiência rendeu sua dissertação de mestrado, concluída em 2010 na Universidade de Brasília (Unb), clique aqui e acesse-a na íntegra.

 

Escola Municipal Santo Antônio da Parida

 

Essa escolha de forma de gestão reflete a história da construção da escola, resultado do trabalho de muitas mãos, literalmente. Com emoção, a professora conta um episódio  marcante, em que a vontade da comunidade escolar de celebrar a formatura de filhos e filhas uniu pais, mães, tios, tias, avós, avôs e conhecidos para construir um barracão para a festa. Depois quee encontraram um espaço, um emprestou o trator da fazenda em que trabalhava e nivelou o chão, outros foram em busca de troncos de árvores para serem usados como vigas e o teto, que inicialmente seria de folhas de palmeira da região, foi coberto com telhinhas de amianto de doação. Além disso, para arrecadar dinheiro, venderam comidas e organizaram brechós. Uma das salas de aula ainda traz nas paredes lembranças daquela festa. Na época, ao invés de aula, aquele espaço era usado para venda de bebidas e comidas - uma das paredes, que dá para o pátio do barracão, tem uma janela grande com dobradiças diferentes, que abre para cima e para baixo, formando um pequeno balcão onde objetos podem ser apoiados.

Assim como essas paredes mostram a presença da comunidade na escola, revelam o apoio insuficiente da Prefeitura. Nos meus dias por lá pude observar o descomprometimento do governo com a comunidade. Salas pequenas, mal iluminadas, muitas sem lousas, portas e janelas quebradas (quase a deixei cair no chão uma das janelas ao tentar abri-la); sobre as cadeiras, melhor testá-las antes de sentar. Em dias de chuva, as diversas goteiras aparecem, sendo uma delas bem na entrada da sala de aula e a outra perto da estante de livros. Os professores seguiam as atividades como se nada estivesse acontecido, apenas pedindo para os alunos afastarem um pouco a cadeira.

Apesar disso, Del agradece a estrutura que a escola tem hoje. “Eu dava aula olhando para a outra professora”, conta sobre a época em que duas professoras dividiam a mesma sala, uma sentava de frente para a outra e os alunos de costas uns para os outros, seguindo cada qual com sua aula. Mas igualmente não deixa de lamentar a atual situação: “parece que as pessoas se acomodaram”. Por já terem enfrentado situações tão difíceis, o que a escola possui hoje é considerado muito bom.

 

Sala de aula da Escola do Sertão

 

A comunidade luta pelo restabelecimento do ensino médio noturno - atualmente a escola tem uma sala com apenas quatro alunos do ensino médio em modalidade multisseriada, isto é, estudantes de diferentes séries assistem aulas juntos. Diversos estudantes ficam impossibilitados de acompanhar as aulas, já que começam a trabalhar cedo. De acordo com o IPEA, a população rural possui em média 4,8 anos de estudo, enquanto a população urbana possui 8,7 anos.

O livro “Dicionário da Educação do Campo” traz uma citação, de Gilma da Costa Cavalcante e Maria das Graças da Silva, que sintetiza os tempos da infância e a relação com trabalho no campo: “A infância tem uma vida muito curta no campo, por isso, a educação da infância tem uma vida curta.” Nesse universo, o enorme desafio de se manter as crianças em idade certa na escola também se reflete nos rostos dos jovens - o trabalho árduo no campo, desde cedo, leva a uma dificuldade para se identificar as idades, ao menos frente os olhos de quem vem de fora, como eu. Filho mais velho de Del, Igor é casado com Dena, juntos tiveram o caçula da família, Heitor, e também trabalham na escola. Além de ser professor, Igor maneja uma horta e trabalha com baru, uma castanha típica da região. Para o primogênito da família, “não tem nada melhor do que ser seu próprio chefe”. Permitir a escolha de seus horários e ritmo de trabalho é fundamental. Enquanto conversávamos sobre isso, julguei que teria aproximadamente 30 ou mesmo 35 anos, mas ele 25.

 

Alunos da Escola do Sertão

 

Migrações

Assim como a escola, todo resto da comunidade é atingido pelo isolamento do Estado. Para quem não sabe, como eu não sabia até chegar lá ou, se sabia, não tinha dimensão do quanto isso é de fato real, no Sertão só chegou rede elétrica em 2003, rede de água em 2005 e internet (em pouquíssimas casas e na escola) neste ano de 2017. A professora lembra que antigamente ela e seus alunos buscavam água no rio para a escola. Antigamente havia poucos carros na comunidade, o que inviabilizava ou, no mínimo, dificultava muito o acesso a tratamentos. Até hoje não há postos de saúde na região. Com tristeza escutei histórias de mães que perderam seus filhos por doenças comuns, como sarampo.

Atualmente é mais fácil o acesso à cidade, mais famílias têm carros e há trabalhadores que fazem o trajeto de Alto Paraíso diariamente, como o diretor, vice-diretora e alguns professores da escola, mas a maioria das famílias geralmente só vai à cidade uma vez por semana. Compram o básico: a maior parte das coisas que consomem é produzida nas próprias fazendas da região. Por lá, minha alimentação era praticamente toda orgânica, vinda da horta de Igor, que ele planta e cuida, com auxílio de um funcionário, Rafael, de 22 anos. Além da horta, o marido de Del, Zeth, cria gado. Todo dia chega com leite da fazenda. Dona Laurinda, mãe de Del, era a responsável pelo preparo dos alimentos e por deliciosas refeições. Me apaixonei por seu pão caseiro e pelo queijo fresco.

Clique aqui e acesse livro-reportagem produzido por alunas da UFG sobre o Sertão.

 

 

 

 

 

 

 

A relação espaço-tempo do Sertão é visivelmente diferente do meio urbano. Para começar, os moradores da região não aderem ao horário de verão - admito que tive dificuldades para me organizar, já que mantinha comunicação com pessoas da minha cidade e a televisão estava no horário de verão. Os moradores da região gostam da quietude e solitude do Sertão. Segurança e familiaridade são características daquele lugar, as pessoas da comunidade se conhecem e conversam olhando nos olhos umas da outras, são extremamente atenciosas. Quando comentei que nunca havia comido cuscuz e tinha vontade de provar, Dena logo se ofereceu para fazer pra mim. Imaginei que no dia seguinte ou no outro ela faria no almoço ou no jantar para todos nós, mas, naquele mesmo dia, umas poucas horas depois, me chamou no meu quarto: “Quer o cuscuz agora? Vamos lá na cozinha para eu te mostrar como faz.”  

Conheci a mãe de Dena, Dona Bernarda, uma senhora simples e, assim como a filha, atenciosa - ou talvez a filha que seja como a mãe. Ela é conhecida por seu domínio sobre ervas e chás medicinais. Antigamente, pela ausência de postos de saúde e pelo difícil acesso a à cidade, diversas pessoas recorriam à Dona Bernarda para conselhos sobre remédios naturais.  

Apesar da fraternidade e companheirismo entre os moradores do Sertão, o descaso público contribui para a migração da população rural para as cidades, devido à falta de serviços básicos os moradores se vêem obrigados a buscar, em outros espaços, melhor qualidade de vida. No Brasil, o êxodo rural se agravou entre 1970 e 1980 com a mecanização da agricultura. Hoje, apesar de intensidade menor, esse movimento migratória ainda acontece. De acordo com o IBGE e o PNAD, até 2015, 15% da população brasileira morava no campo; em 2000 era 20,3% da população; e em 1980 esse número era de 32%.

 

Senhores conversando no Sertão

 

Para Del o trabalho na escola requer dedicação e afinidade com o Sertão. Ela descreve, em sua tese de mestrado, como era difícil a contratação de professores nas décadas de 1970 e 1980, anterior à vinda dela para o sertão. “Por não pertencerem à comunidade [os professores] logo iam embora”. E ainda hoje isto é um problema, já que me relata que por vezes os próprios professores pressionam os alunos a saírem do Sertão, com um discurso de que aquela região não tem futuro.

A professora conta que é uma luta diária a manutenção da escola. Esse cenário se repete por outras escolas do campo, que por vezes são submetidas a pressões dos governos municipais e estaduais a encerrarem suas atividades. Em contrapartida é oferecido transporte escolar das regiões interioranas à cidade, para que as crianças e jovens acompanhem aulas no meio urbano - esse movimento de transferência de alunos é conhecido como nucleação. De acordo com Lia de Oliveira e Marília Campos, no artigo Educação Básica do Campo (presente no livro Dicionário da Educação do Campo), essa situação dificulta ainda mais o acesso, inclusão e permanência desses estudantes do campo nas escolas. Isso porque diversos alunos deixariam de frequentar as aulas por causa da distância e por não se sentirem confortáveis em outro ambiente onde, muitas vezes, sofrem preconceito.

 

Dona Laurinda fazendo pão

 

Enquanto fazia os pães da semana, Dona Laurinda, a mãe de Del, me relatou que não teve oportunidade de educação quando nova, mas que hoje quer se inscrever na EJA e espera, ansiosamente, a abertura das aulas no Sertão, uma vez que é inviável para ela acompanhar as aulas de Alto Paraíso pela distância.

 

 

 

 

Resistência - Educação do Campo

A década de 1990 marcou o surgimento de movimentos de resistência e de reconhecimento do campo e de seus habitantes. Segundo as pesquisadoras Oliveira e Campos, diversas populações campesinas, indígenas, caiçaras, quilombolas, atingidas por barragens e de agricultores urbanos buscam a educação a partir de uma perspectiva contra-hegemônica, processo iniciado por “uma rebeldia como sentimento/luta pela emancipação”.

As autoras explicam que é neste momento que surge a Educação do Campo, em contrapartida à escola rural, com a presença e protagonismo dos movimentos sociais do campo na luta e resistência, não apenas pelo reconhecimento de suas existências, mas por respeito e inclusão dos seus saberes, cultura, práticas, organização do trabalho, dentre outras características, na educação. Já a escola rural, ao contrário da Educação do Campo, é inserida por órgão oficiais, o Estado, a prefeitura, e a escolarização é vista como uma forma de ensinar e adaptar a população rural à realidade produtivista do mundo urbano, “tendo sido um elemento que contribuiu ideologicamente para provocar a saída dos sujeitos do campo para se tornarem operários na cidade. A educação rural desempenhou o papel de inserir os sujeitos do campo na cultura capitalista urbana, tendo um caráter marcadamente 'colonizador'", diz o estudo, ecoando o pensamento de Paulo Freire.

 

Cancela em fazenda do Sertão

 

“Aqui, eu digo que é uma Escola 'no' Campo, não uma Escola 'do' Campo. Porque a gente não tem toda a luta que escolas como do MST têm”, diz Del. Ela explica que a escola de Sertão possui uma educação regular, mas aplicada ao contexto local. Pelo respeito e afeto que possui pela região, ela mesma faz o enfrentamento cotidiano e luta por uma educação de qualidade para seus estudantes, que igualmente respeite os saberes e histórias do Sertão.

A professora ainda defende a importância de um corpo docente local, por melhor entender a dinâmica e realidade destas crianças. Acompanhei uma de suas aulas, um passeio externo com a turma do sétimo ano. Com naturalidade, conversava com seus alunos, respeitando o tempo deles de aproveitarem a liberdade fora da sala de aula. Correndo morro acima, uns desafiando os outros, o objetivo era ver quem chegaria mais rápido no topo. Quando finalmente chegamos lá, ficamos apoiados em um cerca enquanto a professora explicava o que era a linha do horizonte e nomeava os morros e serras que nos envolvia na região, contando sobre a importância do Cerrado e da Chapada dos Veadeiros.

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