Base Nacional Comum: currículo para a educação básica em disputa

por João Marcos Veiga

A Base Nacional Comum, vista como um conjunto de conhecimentos e habilidades essenciais que cada estudante brasileiro deve aprender nas diferentes etapas da Educação Básica, está prevista na Constituição Federal, na Lei de Diretrizes e Bases, de 1996, e na meta 7 do Plano Nacional de Educação (PNE) - "fomentar a qualidade da Educação Básica, do fluxo escolar e da aprendizagem".

Esse debate vem ganhando mais força desde julho do ano passado, quando o Ministério da Educação (MEC) retomou o debate para a construção dos alicerces de aprendizagem para a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio. Conduzida pela Secretaria de Educação Básica do MEC (SEB), a proposta final deverá ser encaminhada ao Conselho Nacional de Educação até junho de 2016.

Em entrevista por telefone ao portal ANPEd, Manuel Palácios (UFJF), à frente da SEB desde o mês de fevereiro deste ano, falou sobre as quatro etapas dessa construção e as questões que a envolvem. A primeira parte, em andamento, refere-se a um levantamento sistemático dos currículos já praticados - dois mil municípios e 24 estados enviaram material a partir de solicitação - e demais documentos disponíveis, a exemplo do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa. "Não há aqui intenção de rever ou alterar diretrizes estabelecidas. (...) O MEC fará um esforço de procurar uma adesão forte das unidades da federação, tomar como referência o que já está em vigor e projetar alguma reforma", afirma Palácios, pontuando a abertura ao processo colaborativo e a importância do apoio da União Nacional de Dirigentes Municipais de Educação (Undime) e do Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed).

Na segunda etapa, o documento preliminar receberá leituras de entidades e organizações científicas diversas, como a ANPEd, que poderão, segundo afirmou o secretário Palácios, enviar sugestões (formais, por escrito) com a finalidade de corrigir "erros de perspectiva" no material. Por sua vez, o terceiro estágio, que prevê a abertura ao debate público e com as redes - planejada para o segundo semestre de 2015 -, terá participação do Fórum Nacional de Educação (FNE). "Nós convidados o FNE para assumir um papel de acompanhamento, a fim de entregar a proposta ao CNE com um relato do que foi incorporado, fidedigno da participação." A última etapa será a criação de uma plataforma digital para colher opiniões e registrar percepções diversas.

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foto: Paulo Carrano

A ANPEd, em conjunto com outras entidades educacionais, já se posicionou publicamente de forma contrária à metodologia adotada pelo MEC "que no lugar de realizar amplo debate público sobre tema tão sensível e importante para professores, gestores e estudantes das escolas públicas brasileiras optou pelo caminho de escuta de especialistas convidados. Da mesma forma, parece que se encontra em curso o abandono ou minimização das Diretrizes Curriculares existentes que trazem o princípio da articulação curricular por áreas de conhecimentos", analisa Paulo Carrano, segundo secretário da Associação. 

A Presidente da ANPEd esteve em duas audiências com o Secretário da Educação Básica, Manuel Palacius, a seu convite, para tratar do tema da Base Nacional Comum, onde o secretário informava de Portaria que seria publicada pelo ministro, nomeando uma comissão para acompanhar a elaboração da BNC. Nas duas reuniões a pauta se repetiu, sendo que a exposição sobre os procedimentos que já estavam em andamento eram a mobilização de especialistas para elaborar objetivos de aprendizagem, que deveriam ser formatados como documento a ser entregue ao CNE como BNC.

Maria Margarida Machado, presidente da Associação ponderou nas duas audiências a discordância da entidade com a concepção e a metodologia de trabalho definida para a temática pelo Secretário da SEB, tendo em vista que reduzia a concepção de currículo a lista de objetivos e não considerava as discussões que há dois anos já vinham sendo feitas sob coordenação do MEC, onde estavam em pauta a concretização das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica (com todas as diretrizes que se desdobraram para as etapas e modalidades) e não retomava o documento em debate sobre os direitos de aprendizagem.

"A associação continua se manifestando em relação a esta temática, nos vários espaços em que esta tem sido pautada, alertando para o risco de cairmos num reducionismo conceitual, que representa a volta de defesa de um currículo mínimo engessado, ao passo em que pode representar mais uma construção não contando com a escuta e com a participação das escolas, não se concretizando enquanto política curricular, como ocorreu com os parâmetros curriculares nacionais da década de 1990", argumenta Maria Margarida Machado, presidente da ANPEd.

Disputa e interpretações

A construção da Base Nacional Comum traz impactos para o planejamento das escolas, a formação inicial dos docentes, o sistema de avaliação e os materiais didáticos, configurando-se como um espaço de disputa com diferentes interpretações. Para Antonio Carlos Rodrigues de Amorim (UNICAMP), vice-presidente da ANPEd pela região Sudeste, a formulação de um "currículo mínimo" muitas vezes evidencia uma busca pela hegemonização, com prejuízo às disciplinas de menor tradição.

"Minha proposta é olharmos de uma outra forma: centrarmos a atenção no que é diversificado, associado ao local, com vínculo às realidades das comunidades, que venham dos interesses (políticos, éticos, econômicos, culturais, epistemológicos e cognitivos) das pessoas de uma determinada escola. A partir dessa diversificação ou diferenciação, passaríamos ao processo de seleção, organização e invenção dos espaços e tempos escolares, com o auxílio das disciplinas escolares, que se tornariam um 'comum' partilhado pela experiência, pela sensibilidade-racionalidade, pela inserção crítica e potente com as culturas, etc."

Confira ao final o texto completo de Antonio Amorim (ANPEd), além de posicionamentos de Sandra Escovedo Selles (Abrapec) e Inês Barbosa (ABdC), a pedido do portal ANPEd.

Para Sandra Escovedo Selles, presidente da Associação Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências (ABRAPEC), o movimento de construção curricular tem que expressar as múltiplas vozes dos professores, pesquisadores em Educação e educadores do país. Nesse sentido, Sandra Selles ressalta preocupação com a "posição subalterna historicamente dispensada aos professores da Educação Básica nos processos de produção curricular e de políticas educacionais. Rejeito uma participação marginal desses docentes, em comissões nas quais sua presença é minoritária e pontual."

A própria necessidade de uma Base Nacional Comum é questionada por alguns pesquisadores, como Inês Barbosa, presidente da Associação Brasileira de Currículo (ABdC), que afirma já existirem diretrizes democraticamente formuladas para os diferentes níveis e modalidades de ensino. "Comprometendo a autonomia docente, o direito à diferença e o respeito aos saberes e culturas locais por meio dos padrões impostos e do controle externo dos processos pedagógicos, os currículos nacionais unificados têm sido úteis para a imposição de conteúdos mínimos baseados no pensamento e no modelo econômico hegemônicos, servindo-se das avaliações em larga escala para coibir o trabalho autônomo, criativo e respeitoso da riqueza das diferenças sociais, culturais e de aprendizagem que caracterizam os cotidianos das escolas e aquilo que neles se passa", argumenta a presidente da ABdC.

Manuel Palácios considera que são naturais as manifestações de divergências e que a elaboração da proposta vai se dar a partir de uma ampla discussão. "Só assim se chegará a um bom termo", afirma. O Secretário de Educação Básica se diz otimista quanto aos resultados aguardados. "Não estamos elaborando uma obra intocável. Ela será objeto de revisão, aprimoramento, de debate nacional para reflexão." A respeito de um trabalho paralelo pela Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) da Presidência da República, comandada por Mangabeira Unger, Palácios pontua que o debate deve ser aberto, sendo dessa forma bem vinda a contribuição. No entanto, o secretário reafirma que a formulação de uma BNC é atribuição do MEC. "Creio que a intenção do SAE é de promover debate, mas não me parece estar no horizonte deles discutir tudo, como referências curriculares. Isso só se tornará concreto com a mobilização de professores, entidades. Acho que querem promover o debate, apenas conceitual, não vejo ali uma proposta alternativa."

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Posicionamentos sobre a Base Nacional Comum

ANTONIO CARLOS RODRIGUES DE AMORIM (Unicamp)
vice-presidente da ANPEd pela região Sudeste

As questões referentes à Base Nacional Comum (Curricular) estão no centro de uma das discussões atuais que voltam a colocar em tensão as relações entre currículos e conhecimentos por meio da seleção do que deveria ser comum a todas as escolas e ao que deveria ser diferente (em outras palavras, currículo mínimo e parte diversificada). Do ponto de vista da história do currículo e das disciplinas escolares, há evidências muito bem detalhadas nas pesquisas acadêmicas que nos permitem ver que o currículo mínimo, composto por determinadas disciplinas, é um campo de disputa e de busca de hegemonização. O que estou querendo dizer é que a discussão sobre comum e diversificado, em certa medida, escamoteia o que viria a ser o "grande" problema - se existe - da relação entre currículo e conhecimento. O que se nota é a disputa, cada vez maior, do que "precisaria" ser contemplado como mínimo; e nesse jogo de poder e de significação, como as disciplinas até então estáveis no currículo escolar e as com menor tradição curricular se veem em busca de garantir sua presença. Com tal ênfase entre parte comum e parte diversificada, a parte diversificada fica sempre subalternizada ou submissa e nos centramos a olhar como ela poderia ser "incluída" no currículo.
Minha proposta é olharmos de uma outra forma: centrarmos a atenção no que é diversificado, associado ao local, com vínculo às realidades das comunidades, que venham dos interesses (políticos, éticos, econômicos, culturais, epistemológicos e cognitivos) das pessoas de uma determinada escola. A partir dessa diversificação ou diferenciação, passaríamos ao processo de seleção, organização e invenção dos espaços e tempos escolares, com o auxílio das disciplinas escolares, que se tornariam um "comum" partilhado pela experiência, pela sensibilidade-racionalidade, pela inserção crítica e potente com as culturas, etc.

A diversidade pode ser entendida como um tipo de variação plural de um "único" em busca de dar visibilidade às diferenças. A tensão que me parece importante de chamar a atenção está entre a polarização entre o único, o essencial, o idêntico e o diverso, o diferente, polarização essa que trabalharia, em termos curriculares, na composição de vários diferentes, únicos em si mesmos, sem possibilidades de encontros, transformações, críticas e reflexões a respeito do que seja diverso, mas, especialmente, da produção do diverso e suas consequências que, por exemplo, podem se associar às desigualdades, à discriminação, ao cinismo, à tolerância desinteressada ou à naturalização de que o diverso existe, está dado, e não há sobre o quê discutir.

Penso que seja muito importante migrarmos do pensamento com/sobre a diversidade para o pensamento da diferença nas discussões sobre currículo e escola. Há acúmulo considerável da produção de pesquisa acadêmica neste campo, que nos dá algumas pistas sobre o quão é importante, pelo menos, colocar a diferença como questão a ser problematizada, debatida e (re)vitalizada. Associar diferença com diversidade é uma das possíveis linhas para que esta discussão seja pautada; a diversidade tem sido entendida como uma outra síntese que aglutina as diferenças em um tipo de homogeneidade variada, diversa, cujas marcas dos sujeitos não são apagadas totalmente, mas ainda se "assegurando" que em todo diverso há aspectos comuns que retornariam o pensamento curricular para um humano ideal, utópico.
Ora, se associarmos a diferença com as singularidades ou mesmo com a delimitação de fronteiras, as lutas por marcar identidades específicas, teríamos outras utopias em jogo. Se avançássemos em direção à relação da diversidade com a barbárie, com a impossibilidade do consenso, com a necessidade da construção de outras vias de comunicação e convivência, com o entendimento de territórios que estão sendo desenhados muito mais em direção à separação que permita a existência/sobrevivência que resiste à dominação, lançaríamos a diversidade em um campo de significados e de representação mais próximos de uma distopia ou de um questionamento do significado de humano genérico, comum e universal.

SANDRA ESCOVEDO SELLES
presidente da Associação Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências (Abrapec)

A área de Educação em Ciências há várias décadas vem produzindo conhecimento e refletindo sobre questões educacionais relativas aos processos de ensino e aprendizagem, bem como aos processos formativos dos docentes da Educação Básica. As reflexões, geradas e compartilhadas em inúmeros Congressos e Encontros Acadêmicos, organizados pelas Associações Científicas desta área, tem construído um conjunto de pressupostos que sustentam suas ações. Em particular, esses pressupostos constituem a base científica e ética para as pesquisas e demais ações educativas, pois visam assegurar a professores e alunos da Educação Básica: (i) a formação humana integral; (ii) uma formação visando uma educação científica de qualidade, para construir um país soberano e desenvolvido científica e tecnologicamente; (iii) o respeito à diversidade cultural, étnica e regional do país; (iv) a igualdade racial, regional e de gênero; (v) a defesa da cidadania e a erradicação de todas as formas de discriminação; (vi) a rejeição ao ensino religioso confessional; (vii) a educação inclusiva; (viii) a participação efetiva dos professores no processo de decisões curriculares, com representatividade expressiva; (ix) a sustentabilidade ambiental.

Em relação à elaboração das Bases Comuns Nacionais, entendo que este movimento de construção curricular tem que expressar as múltiplas vozes dos professores, pesquisadores em Educação e educadores desse País. Em particular, preocupo-me com a posição subalterna historicamente dispensada aos professores da Educação Básica nos processos de produção curricular e de políticas educacionais. Rejeito uma participação marginal desses docentes, em comissões nas quais sua presença é minoritária e pontual. Se queremos assegurar aos alunos e alunas da Educação Básica em nosso país uma educação pública que os dignifique no mundo, que lhes faça sair de um lugar de dependência e lhes possibilite enfrentar os desafios científicos e tecnológicos, políticos, econômicos e culturais que se colocam no tecido social, temos que ouvir os profissionais que se ocupam diariamente de lhes oferecer acesso ao conhecimento e à cultura, favorecendo sua formação humana integral. É notória a pouca adesão desses docentes a políticas e projetos curriculares com os quais não se identificam e que os deixam à margem, colocando-os como meros aplicadores. Rejeito, portanto, a produção de um documento que subtraia a voz dos docentes para fazer ouvir outras vozes que refletem prioritariamente interesses econômicos e não se sustentem nos princípios constitucionais.

INÊS BARBOSA
Presidente da Associação Brasileira de Currículo (ABdC)

A suposta necessidade de definição de uma base nacional comum curricular, sustentada pelo fato de esta ser uma exigência do Plano Nacional de Educação, entra em choque com o fato de que no Brasil já existem diretrizes curriculares para os diferentes níveis e modalidades de ensino, democraticamente formuladas e em consonância com a política de respeito à diversidade nacional e à pluralidade de possibilidades de se educar e ensinar populações diferentes em espaços-tempos diferentes.
A padronização proposta teria como meta reduzir as desigualdades de acesso à escola e de direito à aprendizagem. O argumento esbarra na realidade da implantação de currículos nacionais mundo afora, que ampliou as desigualdades educacionais na maior parte dos países em que ocorreu, ao mesmo tempo em que impôs padrões de aprendizagem e de comportamento inadequados para a maior parte dos envolvidos – escolas, professores e alunos.
Comprometendo a autonomia docente, o direito à diferença e o respeito aos saberes e culturas locais por meio dos padrões impostos e do controle externo dos processos pedagógicos, os currículos nacionais unificados têm sido úteis para a imposição de conteúdos mínimos baseados no pensamento e no modelo econômico hegemônicos, servindo-se das avaliações em larga escala para coibir o trabalho autônomo, criativo e respeitoso da riqueza das diferenças sociais, culturais e de aprendizagem que caracterizam os cotidianos das escolas e aquilo que neles se passa.

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As discussões sobre a Base Nacional Comum vêm sendo disparadoras de diferentes reflexões na compreensão de políticas curriculares para as escolas brasileiras, particularmente em tensões sobre conhecimentos comuns, diversificação curricular, cotidiano escolar, autonomia, avaliação, entre outras. A ANPEd abriu em seu fórum na internet espaço para compartilhar informes sobre os eventos, discutir documentos de base e construir propostas coletivas. Participe! Acesse o fórum no seguinte endereço: http://www.anped.org.br/forum/