A creche como contexto social de desenvolvimento | Colaboração de texto | por Vanessa Ferraz Almeida Neves (GT 07 | UFMG)

A creche pode ser considerada como um contexto social para o desenvolvimento dos bebês e crianças pequenas? A importância dessa questão revela-se ao considerarmos que 35,7% das crianças brasileiras até três anos de idade são atendidas em creches. O compartilhamento do cuidado e da educação de bebês e crianças pequenas com as famílias compõe as políticas públicas para essa faixa etária, tendo como ensejo a busca pela equidade em relação a raça/etnia, gênero e classe social, bem como a construção de parâmetros de qualidade para que ambientes coletivos de qualidade contribuam para o desenvolvimento cultural das crianças.

A partir de uma abordagem histórico-cultural (Vigotski, 1932/1996), o desenvolvimento humano é compreendido como uma construção compartilhada, na qual tanto a criança quanto seus companheiros (crianças e adultos) se constituem nas interações que estabelecem, ocorrendo mudanças nos sujeitos, em seus processos de desenvolvimento, no grupo e no ambiente. Tais mudanças não acontecem de maneira linear, mas implicam em rupturas e crises, estando em constante movimento e transformação.

A entrada em instituições de Educação Infantil possibilita às crianças, talvez pela primeira vez, a construção de uma gama variada de interações sociais em um espaço coletivo: interações entre as crianças, entre as crianças e as professoras, entre as crianças e os artefatos culturais, entre as crianças e o ambiente. Cada criança irá inserir-se nessa rede de significações (Rossetti-Ferreira et al., 2004) de uma maneira particular, criando e recriando significados sobre si mesma, sobre os outros e sobre o contexto no qual está inserida. Assim, o processo de desenvolvimento cultural das crianças torna-se marcado pela sua inserção e participação nessa rede de significações, como fica evidente por meio da análise de um evento filmado no primeiro dia dos bebês em uma Escola Municipal de Educação Infantil em Belo Horizonte (EMEI Tupi)i.

Esse é a primeiro dia dos bebês na EMEI Tupi e o horário de funcionamento da EMEI é de duas horas. Há sete bebês com idade aproximada entre sete e nove meses, seus familiares e três professoras na turma. O clima do berçário é tranquilo. Professoras e familiares conversam um pouco sobre a rotina do berçário e brincam com os bebês. Há brinquedos variados espalhados no tapete emborrachado da sala de atividades. Por volta de 8h34min, Paulo olha para os lados, vê uma bola, engatinha em direção a ela e estende sua mão para ela. Paulo engatinha em direção oposta à da bola, olha para a direita, engatinha novamente e vê Maria. Engatinha em direção a ela. Maria estava com um bico na boca, esboça um pequeno sorriso e engatinha também em direção a Paulo. Ele estende a mão direita para pegar o bico de Maria. Ela cerra os dentes e levanta um pouco a mão esquerda. Paulo consegue puxar o bico da boca de Maria. Ele segura o bico e tenta coloca-lo novamente na boca da colega. Maria abre a boca e, após duas tentativas, consegue morder o bico. Paulo puxa o bico de volta, Maria sorri, fica com a boca aberta e tenta pegar o bico com a boca. Paulo tenta colocar o bico novamente na boca de Maria, se desequilibra, apoia a mão que estava com o bico no chão e continua segurando o bico. Uma professora, Verônica, diz: “Vai Paulo, devolve pra ela”. Maria acompanha o movimento do bico, abrindo a boca e abaixando a cabeça para pegar o bico da mão de Paulo. Ele se senta, continuando a segurar o bico. Maria engatinha sorrindo, e se aproxima de Paulo olhando para o bico. Paulo tenta, mais uma vez, colocar o bico na boca de Maria. Verônica diz: “Devolve amor... isso”. Ao fazer o movimento de colocar o bico na boca de Maria, Paulo abre a boca e leva as duas mãos em direção à Maria. Nesse movimento, a mão que não estava segurando o bico agarra o cabelo da menina. A mãe de Paulo, que observava a cena, fala “Não pode.”. Paulo olha para ela, estende a mão que segurava o bico, volta seu olhar para o bico e segura-o com as duas mãos. Maria continua acompanhando o movimento do bico com um movimento de cabeça. Verônica diz: “Devolve o bico pra ela”. Paulo continua manipulando o bico e balbucia. Maria olha para ele. A mãe fala algo (inaudível), Paulo olha para Maria e também para a mãe. Maria se aproxima mais um pouco, olhando o bico e aproximando sua boca da mão direita de Paulo. A mãe de Paulo diz: “Aqui o seu, oh”. Paulo olha para ela e leva o bico para sua própria boca. A mãe de Paulo se levanta e pega o bico de Maria e coloca o bico de Paulo na boca da criança. Ela leva o bico para lavar. Verônica aponta para a pia do berçário. Paulo olha para Maria e olha em outra direção. Verônica comenta: “Agora ela vai querer o bico dele”. Maria se aproxima mais levando a boca em direção ao bico de Paulo. Alguém comenta: “Agora é ela... Olha lá”. Os adultos que observam a cena riem. As duas crianças se olham. Maria estende sua mão e puxa o bico da boca de Paulo. Ela se senta e estende o bico em direção ao colega e, logo a seguir, recolhe a mão. A mãe de Paulo diz algo (inaudível) e Paulo olha para ela. Ela se aproxima com o bico de Maria. Maria estende a mão que segura o bico em direção a Paulo. Ao mesmo tempo, a mãe de Paulo coloca o bico na boca de Maria. Alguém comenta: “Agora eu quero ver se ele vai pegar”. Paulo olha para Maria, abre a boca e engatinha em direção a ela. Paulo abre e fecha a boca duas vezes, se equilibrando com as mãos no ar. Ele se aproxima e puxa o bico de Maria, caindo em cima dela. A mãe de Paulo se aproxima e ajuda as duas crianças. Verônica chama: “Paulo, Paulo”. A mãe de Paulo o coloca sentado um pouco afastado de Maria, segurando o bico dele com as mãos. O bico encosta no chão e a mãe se levanta para lavá-lo. Verônica diz: “Cadê o seu, amor? Cadê o seu?” Paulo acompanha o bico com um movimento de cabeça. Maria se aproxima e encosta, com o dedo indicador esquerdo, nas letras de um desenho que estava blusa de Paulo. Verônica comenta: “Olha ela mostrando a letra na blusa dele, olha”. A mãe de Paulo coloca o bico na boca dele. Paulo se vira em direção à mãe, olha para ela e também em direção à professora que estava sentada próxima a ele. Ele engatinha em direção à mãe. Os adultos comentam a idade das crianças. A mãe de Bruno fala: “Esses três (apontando para Maria, Paulo e Bruno) têm nove (meses)”. Maria engatinha para outra direção, à esquerda de Paulo, vê uma bola de pano e se aproxima dela. Ela rola a bola com a mão direita e acompanha seu movimento com a cabeça. Alguém, fora do quadro de filmagem, rola a bola de volta para ela. Maria olha a bola e tenta repetir o movimento de rolar por duas vezes. Na segunda vez, ela consegue rolar a bola. Maria se senta e empurra a bola com a mão esquerda (Evento filmado. Duração: 1min51seg. Idade dos bebês: Maria – 9 meses e 27 dias; Pedro – 9 meses e 4 dias. Data: 02/02/2017. Evento analisado em Neves, Katz, Goulart e Gomes, 2018).

O evento descrito nos dá uma pequena dimensão das inúmeras possibilidades de desenvolvimento que se apresentam nas vivências dos bebês no contexto da EMEI Tupi, já no primeiro dia de encontros entre professoras, bebês e famílias. Maria e Paulo estão explorando o ambiente da EMEI Tupi pela primeira vez. Ambos aparentam segurança em engatinhar e explorar tanto os artefatos culturais quanto um ao outro, estabelecendo uma breve interação. É razoável supor que tal segurança esteja relacionada com a presença dos familiares dos bebês, bem como com o ambiente organizado pelas professoras.

A dimensão corporal assume destaque nas relações que são estabelecidas entre os sujeitos envolvidos. Logo antes de ocorrer a interação entre os dois bebês, vemos Paulo enxergar uma bola, engatinhar em direção a ela e tentar pegá-la. Ele olha para outra direção, vê Maria e engatinha em direção a ela. A aproximação de Paulo é percebida e aceita por Maria, que também engatinha em direção a ele com o bico na boca e esboçando o que nos pareceu como um meio sorriso. Percebe-se que os dois bebês expressam intenção de se aproximarem. Talvez esse seja um dos primeiros momentos em que ambos tenham a oportunidade de estar com outros bebês da mesma idade que eles. A partir desse momento, a interação entre eles acontece por meio da linguagem corporal, em que o processo de desenvolvimento psicomotor fica evidente: tentar colocar o bico na boca da colega, agarrar o cabelo, cair em cima de Maria. Todos são movimentos de interação em que há um esforço explícito em estar com o outro.

Há, na interação entre os dois bebês, um artefato cultural marcado pela afetividade: o bico usado por ambos, tanto em suas casas quanto na EMEI. No momento inicial da interação, Paulo é atraído pelo todo [Maria-com-bico] e puxa o bico da boca de Maria. Enquanto pesquisadora que observava a cena, imaginei que Maria iria chorar e que Paulo colocaria o bico na boca. Para surpresa de todos adultos presentes, Paulo tenta devolver o bico para a colega e Maria, mesmo não tendo seu bico de volta, não chora. Até esse momento, os adultos acompanhavam a cena sorrindo e tecendo alguns comentários. Quando a mãe de Paulo percebe que ele leva o bico à boca, ela interfere na cena e retira o artefato da sua mão para higienizá-lo.

Logo a seguir, quando Paulo está com seu bico na boca, Maria imita intencionalmente a ação anterior de Paulo: ela puxa o bico da boca do colega. Novamente, para minha surpresa, Paulo não chora. Os adultos riem e interpretam a cena como uma “revanche” de Maria. Paulo tenta pegar seu bico de volta, mas, nesse movimento, cai em cima de Maria. Os bebês são ajudados pela mãe de Paulo. O evento se encerra quando os dois bebês estão com os respectivos bicos na boca. A partir de então, Paulo se volta para sua mãe e Maria procura a bola.

No evento relatado, podemos levantar a hipótese de que tanto Maria quanto Paulo começaram a participar de uma atividade conjunta e começam a se apropriar daquele espaço como um contexto no qual podem interagir um com o outro em segurança. É possível considerar que o desenrolar da cena foi possível apenas porque os adultos que estavam ali permitiram/mediaram o estabelecimento de uma relação de confiança entre todos os sujeitos envolvidos, mesmo interpretando a cena com elementos de “disputa” e “revanche” que talvez não estivessem ali. Os dois bebês sustentaram o processo interativo entre eles com muito esforço: as ações e gestos nem sempre acompanharam as intenções que eles manifestaram. Devolver o bico resultou em agarrar o cabelo, pegar o bico de volta resultou em cair em cima da colega... Nesse processo, os bebês acolhem um ao outro, afetam a si mesmos e provocam possibilidades de desenvolvimento.

Torna-se visível a importância de um contexto educativo que acolha as especificidades dos bebês. Nesse sentido, respondemos positivamente à pergunta inicialmente apresentada: “Sim!”. A creche pode ser considerada como um contexto social para o desenvolvimento dos bebês e crianças pequenas e é fundamental que continuemos a defende-la como um direito das crianças e das suas famílias e um dever do Estado.

*Vanessa Ferraz Almeida Neves coordena o programa de pesquisa “Infância e Escolarização”, em colaboração com a Profa. Maria de Fátima C. Gomes (UFMG), em que acompanhamos um grupo de bebês ao longo de sua trajetória na EMEI Tupi com base na Etnografia em Educação e na Psicologia histórico-cultural. O programa encontra-se em seu quarto ano e é financiado pelo CNPq e FAPEMIG. Agradeço aos grupos de pesquisa EnlaCEI (Estudos em Cultura, Educação e Infância), GEPSA (Grupo de Estudos e Pesquisas em Psicologia histórico-cultural na Sala de Aula) e NEPEI (Núcleo de Estudos e Pesquisas em Infância e Educação Infantil).

Referências bibliográficas

NEVES, V. F. A.; KATZ, L.; GOULART, M. I. M.; GOMES, M. F. C. Dancing with the pacifiers: infant's perizhivanya in a Brazilian early childhood education centre. Early Child Development And Care. DOI: 10.1080/03004430.2018.1482891. 2018.

ROSSETTI-FERREIRA, M. C.; AMORIM, K. S.; SILVA, A. P. S. Rede de Significações: Alguns Conceitos Básicos. In: ROSSETTI-FERREIRA, M. C.; AMORIM, K. S.; SILVA, A. P. S.; CARVALHO, A. M. A. Redes de Significação e o Estudo do Desenvolvimento Humano. Porto Alegre: Artmed, 2004.

VYGOTSKI, L. S. Problemas de la psicologia infantil. Obras Escogidas. Volume IV. Madrid: Visor Distribuiciones. 1996. Original escrito em 1932.