De Olho na Mídia: Terceira Versão da BNCC

por Camilla Shaw

A terceira versão e última da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) foi entregue no dia 6 de maio deste ano pelo MEC. Após revisões e alterações no Conselho Nacional de Educação (CNE) ela retorna para homologação do Ministério da Educação.

A construção da BNCC se segmentou em dois documentos: um para o Ensino Infantil e o Ensino Fundamental; outro apenas para o Ensino Médio. Essa divisão se deu a partir da sanção do presidente Michel Temer da PEC da reforma do Ensino Médio - com as mudanças no sistema educacional dessa etapa foi necessário mais tempo para elaboração do documento que irá nortear as diretrizes e bases da educação da mesma.

A mídia percorreu três pautas centrais em suas notícias: 1. exposição sobre as principais mudanças da BNCC, por vezes trazendo a opinião de especialistas; 2. a questão da retirada de menção dos termos “orientação sexual” e “identidade” de gênero do documento; 3. e a crítica feita pela ONU sobre a BNCC. Em menor medida, também veiculadas algumas matérias sobre a real condição de se viabilizarem as propostas da base, por questões estruturais e financeiras.

Paulo Carrano, professor da Universidade Federal Fluminense  e Primeiro Secretário da ANPEd, comenta a abordagem da imprensa sobre o tema: “Chamou atenção na cobertura como a imprensa prioriza a voz dos especialistas das fundações. Os professores, estudantes e mesmos os pesquisadores de universidades ficaram fora do jogo por decisão política do MEC. A imprensa não pautou ou problematizou este fenômeno.”

O portal Nexo, lançou um artigo de opinião de Salomão Ximenes, doutor em Direito, professor da UFABC, e Fernando Cássio, doutor em Ciências (Físico-Química), professor da UFABC, que evidencia essa presença do setor empresarial no processo de construção da base. “Abraçado ao discurso da gestão anterior, o MEC e o campo empresarial que o apoia se esforçam para convencer a sociedade brasileira de que a BNCC foi construída democraticamente e, mais do que isso, que não houve alterações no processo de construção da Base com a mudança de governo.” O artigo ainda se atenta para as políticas educacionais com enfoque dentro da escola, as quais transferem a responsabilidade do Estado para o professor: “Estes passam a ser, em substituição ao dever do Estado, os responsáveis primazes pelo fracasso dos alunos, comprovado e repisado em sucessivas divulgações de avaliações externas.”

O portal G1, no próprio dia do lançamento da última versão, divulgou duas notícias principais. A primeira faz um panorama histórico da construção da base e insere as principais mudanças no texto. Logo no segundo parágrafo afirma “A BNCC é considerada fundamental para reduzir desigualdades na educação no Brasil e países desenvolvidos já organizam o ensino por meio de bases nacionais". O texto é expositivo de forma geral, sem aprofundar os possíveis problemas estruturais, curriculares e de implementação da base, além de não expor as contradições falhas percebidas em propostas semelhantes em outros países.

Por sua vez, a outra notícia traz seis opiniões sobre a base - entre elas apenas uma é contrária, as outras são elogiosas e ligada a fundações empresariais. Tal escolha simula uma maior receptividade da sociedade civil em relação a uma base nacional comum, contudo existe um amplo movimento contrário a ela e, especificamente, a como está sendo o processo de construção da mesma. Já no primeiro comentário, Mozart Neves Ramos, diretor de Articulação e Inovação do Instituto Ayrton Senna, diz que “A nova versão da Base Nacional Comum Curricular representa um importante avanço para concretizar a visão da educação integral no País”. Os outros comentários favoráveis ao documento foram dos representantes das seguintes entidades: Fundação Lemann, Todos Pela Educação, Cenpec (Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária) e Fundação Itaú Social. Daniel Cara, coordenador geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação (CNDE), apresentou, entre críticas à BNCC, observação sobre a própria cobertura da imprensa. “A chamada 'versão final' da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) será extensamente debatida na imprensa, provavelmente, por suas qualidades e defeitos em termos supostamente pedagógicos – e há muitos problemas no texto. Porém, considerando o histórico do debate educacional, a discussão será enviesada e pobre”, ponderou Cara.

No mesmo dia de lançamento do documento, o jornal Folha de S. P. publicou duas notícias sobre o tema. A primeira foi uma entrevista com Paulo Blikstein, especialista em tecnologia aplicada à educação e professor na Universidade Stanford, na qual afirma a importância de uma base nacional, porém, entre outras coisas, ressalta problemas na estrutura curricular, que apresenta falhas em diferentes áreas, e indica a necessidade de investimento financeiro para garantir a implementação. O pesquisador se atenta ao risco da base: “Mas é uma aposta arriscada. Se a base for pouco exigente e pouco inovadora, condenamos a escola brasileira a ficar no século 19 por mais 20 anos. Se não houver recurso para implementação e formação de professores, corremos o risco de desorganizar um sistema que já é ruim, e aprofundar diferenças. Não há milagre, não se faz melhora educacional só escrevendo um documento, é preciso um investimento massivo, de bilhões de reais por cinco ou dez anos, com gente tecnicamente habilitada para fazer a coisa funcionar”.

A segunda notícia aborda a retirada da menção dos termos “orientação sexual” e “identidade de gênero” do documento. O MEC divulgou um documento de forma antecipada à imprensa, contudo, ao liberar a versão final da BNCC, mudanças no texto retiravam tais termos. A reportagem da Folha mostra detalhadamente os trechos alterados e ao final da matéria insere uma resposta do MEC quanto à polêmica. Apesar de dedicar uma reportagem inteira ao episódio, não a questão não foi aprofundada - qual é o impacto e significado da retirada desses termos? -, além de não terem sido convidados especialistas para analisá-la.

No dia 31 de maio, quase dois meses depois da divulgação do documento, o portal O Globo divulgou uma extensa reportagem sobre o caso da retirada da menção dos termos sobre gênero. A partir de relatos fortes sobre homofobia e transfobia, insere ao fim do texto que há possibilidade do texto retomar os termos retirados a partir da revisão no CNE.

ONU

“[...] relatorias especiais do Alto Comissariado de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) recomendam que o governo brasileiro tome atitudes necessárias para conduzir uma revisão dos projetos de lei (PLs) que tratam do Escola Sem Partido. [...]  O posicionamento das relatorias especiais da ONU destaca também o impacto de ideias conservadoras defendidas no Escola Sem Partido na definição da Base Nacional Comum Curricular (BNCC).” trecho de notícia da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC).

No dia 13 de abril, o portal da EBC divulgou reportagem a partir de críticas da ONU sobre o movimento Escola Sem Partido e como ele atingiu a BNCC, e igualmente sobre a retirada dos termos “orientação sexual” e “identidade de gênero”. O texto menciona a existência de normas internacionais para o combate da discriminação nos ambientes escolares, incluindo a de orientação sexual.

O portal Nova Escola também dedicou reportagens sobre o tema. A primeira foi liberada no mesmo dia do lançamento da versão final da base, curta, sem análises de especialistas sobre o assunto, apenas apresentando um ou outro ponto do novo texto. Já no dia 30 de maio, uma notícia repercutiu detalhadamente as considerações  da ONU a respeito da questão de gênero, realizadas durante a “Revisão Periódica Universal (RPU), ocasião em que um país é avaliado pelos demais membros da Organização das Nações Unidas (ONU) em questões ligadas a Direitos Humanos”.

No dia 11 de abril, o mesmo site lançou matéria específica a respeito dos termos sobre gênero, retirados da BNCC. O texto não apenas apresenta as trechos alterados, como convida especialistas para analisar o caso. No início da matéria Daniel Cara, coordenador geral da Campanha Nacional pela Educação, expôs sua crítica ao episódio e ao final é corroborado por Michele Escoura, pesquisadora do Núcleo de Marcadores Sociais da Diferença da Universidade de São Paulo (USP) e do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu da Unicamp. Ela explica que, dependendo da corrente teórica adotada, o termo "gênero" não necessariamente engloba todas as discussões, de identidade de gênero à orientação sexual. “Seria preciso entender qual é o entendimento do MEC sobre o assunto”, diz. A preocupação da pesquisadora é que a ausência dessas expressões leve a uma visão redutora do assunto. “Pode acontecer de equipes pedagógicas entenderem que trabalhar gênero só diz respeito a falar sobre violência contra a mulher, por exemplo”, alerta.

Alguns veículos fizeram análises sobre as diretrizes curriculares a partir de entrevistas mais extensas. Um caso interessante é a reportagem da Folha de S.P. de 07 de maio trazendo questionamentos sobre a Base a partir do fracasso de proposta semelhante nos EUA nos últimos sete anos. Em resposta, a rádio CBN veiculou comentário de Ilona Becskeházy com o título de “Brasil precisa de coragem política e competência técnica para ter um currículo ambicioso”. A comentarista defendeu a proposta no Brasil pelas particularidades de "mecanismos de indução" do país, reivindicando "coragem política e competência técnica para se alcançar um currículo ambicioso", além de dar como exemplo bem sucedido uma proposta curricular em Sobrau no Ceará. Por fim, ainda afirmou que o meio acadêmico, como "grupo poderoso", opõe-se à BNCC por negar a ideia de "currículo", que seria  o próprio "demo" nas escolas. A ANPEd se propôs a contrapor tais argumentos convidando a professora Maria Luiza Süssekind (UNIRIO), coordenadora do GT Currículo da ANPEd, para um bate papo sobre a questão. No podcast, a pesquisadora aponta contradições no comentário veiculado na CBN, explica qual a visão de currículo defendida pela Associação e amplia o contexto em torno da construção da BNCC por parte de quem se dedica à pesquisa na área. "CITAR TRECHO DO PODCAST"

"Não só pelo estado de Illinois mas por muitos outros lugares do mundo que implantaram essa unificação curricular, esse processo já foi desconsiderado por muitas questões, mas principalmente por afetar as práticas dos estudantes de aprenderem e afetarem as compentências dos professores de ensinarem."

 

Outros jornais também relataram o caso da questão de gênero e alerta da ONU:

Estadão: "Relatores da ONU classificam 'Escola sem Partido' como 'censura'"

Educação UOL: “Por que precisamos falar sobre gênero na escola?”

Folha de S.P.: “Ministro reclama de críticas e diz que ONU não leu base curricular do Brasil”

Brasil de Fato: “MEC retira ‘identidade de gênero’ e ‘orientação sexual’ da base curricular” 

G1: “MEC tira termo 'orientação sexual' da versão final da base curricular”