Disputas pela significação do currículo: da precisão e clareza às leituras dissonantes | Colaboração de texto | por Rita de Cássia Prazeres Frangella (GT 12|UERJ)

Discutir educação, formação, currículo demanda que observemos a complexidade desses processos, os diferentes elementos que os constituem e como esses vão sendo significados.

No campo curricular temos vivido tempos de intensos debates incitados pela produção de políticas curriculares que envidaram esforços para produção de um currículo único, definidor das práticas pedagógicas, numa retomada de questões já tão problematizadas no âmbito de estudos curriculares: a dicotomização política-prática, as feições instrumentais das políticas, docentes restritos a figurarem como implementadores do currículo. Daí a importância que adjetivações como “precisão” e “clareza”, observadas na Base Nacional Comum Curricular para Educação Básica (2017), na Base Nacional Comum para a Formação inicial de professores da Educação Básica (2019), sejam foco de problematização.

A definição precípua e clara de tais bases incide sobre a ideia de que uma vez definido, o desenvolvimento curricular se trata de questão meramente de administração escolar e gestão do trabalho docente, eclipsando a condição do currículo como processo complexo que envolve relações de poder, disputas, conflitos, negociações, sendo assim atividade política que não se atém a produção de documentos normativos somente, mas como atividade política, exige que retomemos o sentido de político que mobilizamos.

Enquanto pesquisadores do campo do currículo somos instados a desafiar essa lógica de previsibilidade, materialização e reificação, a participarmos da disputa pela significação do currículo, na contestação da linearidade imposta e em defesa da complexidade do fazer curricular. Nesse sentido, temos nos mobilizado em diferentes frentes no âmbito do GT Currículo: na parceria com outras associações como a Associação Brasileira de Currículo (ABdC), na participação em ações como a campanha proposta pela Anped em 2016, “Aqui já tem currículo”, no contexto de discussão e consultas públicas para elaboração da BNCC, entre outros.

As críticas feitas à Base incidem, entre outros aspectos, no apagamento de tantas experiências gestadas em escolas/redes, com demandas locais/contextuais que não podem ser bloqueadas por consensos homogeneizadores. Ainda que haja uma retórica de participação das redes de ensino/professores na produção da BNCC através das consultas públicas num primeiro momento, e depois em audiências públicas, havia um pacto dialógico rompido: apesar da alternância de turno das enunciações, sem debate, uma série de monólogos se perfilavam sem interpelação e possibilidade de afetação.

Esse movimento vivido nos últimos anos nos permite observar o recrudescimento de uma lógica de centralização curricular que agudiza polarizações infecundas entre política-prática, proposição-execução, restringindo o professor à esfera de execução numa visão reducionista do trabalho docente. Se essa questão já não fosse grave o bastante, temos assistido um deslizamento dessa significação ao próprio questionamento da produção de conhecimento no âmbito das ciências humanas e sociais, numa exacerbação da univocidade. Assim nos vemos diante do desafio que, diante das questões postas, reclama a defesa do debate marcado pelo pluralismo democrático.

Diante disso, disputar a significação curricular se dá pautada por esse desafio: fazê-lo como forma de questionar um sentido de verdade que, plasmada no fazer curricular, garante e justifica uma normalização/padronização da prática pedagógica. Penso ser relevante explicitar o uso que faço da ideia de normalização: trata-se de realçar, mais que normatividade - do desejo da norma, inerente ao processo político e o que o tensiona e movimenta -, infiro sobre o que se estabelece como “normal” e expurga o que não é espelho – diferença posta sob a sombra da anormalidade, do que não é próprio, não é certo, não é admissível. A construção desse outro/inimigo se dá na delimitação de fronteiras rígidas, margens sem atravessamento – a recusa da diferença impele a uma movimento que o outro só é considerado como tal se for outro/eu.

O desafio é o enfrentamento de uma narrativa negacionista – e o é porque a lógica que se impõe é a definição do ser/não ser – que se constrói dos retalhos cerzidos de uma dada perspectiva de ciência e de Educação que advoga para si a qualidade de verdade absoluta. Posto dessa forma, essa absolutização/polarização incita o acirramento do debate numa relação antagônica, nos termos amigo/inimigo (Mouffe, 1999) e que como inimigo esse outro deve ser superado, eliminado – é o diferente combatido, visto como anomalia, frente a perspectivas essencialistas. Um pluralismo democrático se dá a partir de um modelo adversial, como argumenta Mouffe (2015), em que ao invés de inimigos, a relação se dá entre adversários, um outro considerado legítimo em sua possibilidade de participar da disputa política, de pôr em movimento articulações que se dão num terreno contingente em que mais que consenso – ainda que esse seja necessário à construção democrática – sabe-se que ele é provisório porque não se dá a partir da inviabilização do dissenso. Consenso e dissenso, para além de uma visão dicotômica, constituem-se tensão ambivalente que mantém em aberto o processo político agonístico, plural e democrático, sob pena de “ao ignorar a dimensão do político, reduzir[em] a política a um conjunto de mudanças supostamente técnicas e a procedimentos neutros” (Mouffe, 2015, p.32).

E essa busca por pluralismo democrático exige de nós também o compromisso de fortalecer o diálogo com a educação básica, no reconhecimento da produção de conhecimento pedagógico dos professores, usurpado em propostas que os reduzem a implementadores de práticas prescritas. Trata-se do que Bhabha (2014) chama de direito enunciativo, de significar e ser interpretado, endereçar e ser endereçado e que se desdobra como direito à resposta e responsabilidade pela resposta; desconsiderar esse direito enunciativo abre caminho para um silêncio ensurdecedor! Assim,

[...] será fundamental encorajar escolas e professores a realçarem a educação que realizam para além da previsibilidade e da padronização requeridas pela BNCC. Apoiar a expressão do pluralismo e da produção da diferença nas formas de pensar e de realizar a educação, já e sempre em curso nas escolas, como dimensões inerradicáveis do educar poderá significar a assunção de uma perspectiva democrática de educação frente à Base. (ABdC, 2018, p.2)

Nesse sentido, assumir que a pesquisa se constitui também produção de sentidos das políticas públicas, que a leitura dos textos, as análises e modos do fazer pesquisa engendram ao jogo político outros espaços de produção de sentidos é também se colocar no exercício de produzir política. Um exercício fecundo em que leituras dissonantes sejam possíveis; dissonantes e plurais, encontro com e na diferença, uma produção de conhecimento que se dê atravessada por uma perspectiva alteritária, em diálogo com Derrida (2004), em que a teimosia do talvez, de forma inapreensível, traga em seu rastro um traço de chance e ameaça que faz o possível emergir de forma incalculável, como interrupção.

*Rita Frangella é presidente da Associação Brasileira de Currículo (ABdC)

 

Referências:

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE CURRÍCULO/ABdC. Nota sobre processos de implantação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) do Ensino Fundamental

BHABHA, Homi. The right to narrate. Havard Design Magazine. No. 38, 2014.

DERRIDA, Jacques. Papel-máquina. São Paulo: Estação Liberdade, 2004.

MOUFEE, Chantal. El retorno de lo político. Comunidad, pluralismo, democracia radical. Buenos Aires:Paidós, 1999.

________________. Sobre o político. São Paulo: Martins Fontes, 2015.