Elaboração participativa de recurso didático um processo de formação docente ancorado na educação popular | Colaboração de texto | por Sandro de Castro Pitano (GT 06 | UCS)

Em atenção à crescente demanda manifestada por professoras e professores em exercício nas escolas do município de Canguçu-RS, o Grupo Educação Popular: ação e pesquisa desenvolveu um projeto coletivo, iniciado em 2019, por meio de pesquisa participante, com o objetivo de elaborar um atlas escolar para a rede municipal de educação. Voltando-se para uma carência concreta da prática profissional junto a disciplinas como História, Geografia e Ciências, o projeto tem buscado promover, de forma concomitante, formação de professores e produção de recursos didáticos, alicerçadas nos princípios da educação popular. 

Canguçu é um município do sul do Rio Grande do Sul, que possui atualmente uma população de cerca de 56 mil pessoas (IBGE, 2018), distribuídas em uma área territorial de 3.526,253 km², com extensa zona rural.  A rede municipal de ensino conta com 35 escolas, das quais 25 estão distribuídas na zona rural (Ensino Fundamental) e 10 na zona urbana. As urbanas compreendem 5 Escolas de Educação Infantil (4 são creches) e 5 Escolas de Ensino Fundamental completo. O total de alunos matriculados (2019) é de 5.311, atendidos por 515 professores e professoras (informações fornecidas pela SMEEC/Canguçu).

Como recurso didático o atlas possui grande relevância para o ensino e a aprendizagem das disciplinas escolares vinculadas às ciências humanas,  tal como a Geografia. No processo de construção do conhecimento geográfico, o atlas pode ser utilizado desde os anos iniciais do Ensino Fundamental, passando pelos anos finais e também no Ensino Médio. Representa uma fonte confiável e de fácil acesso e manuseio sobre dados e características do município, organizadas segundo princípios pedagógicos. Porém, devido ao foco local das informações nele contidas, o mesmo não é facilmente encontrado nas escolas. Enquanto os livros didáticos reúnem um amplo acervo de dados de caráter global e/ou nacional, o atlas trata, especificamente, do espaço municipal (local). Por isso, sua produção depende de um esforço por buscar e reunir dados e informações contextuais, capazes de retratar, com profundidade científica e intencionalidade pedagógica, o município tematizado. Na perspectiva da educação popular, esse esforço necessita ser pautado pela participação e produção coletiva, envolvendo todos os sujeitos interessados.

O grupo de pesquisa percebeu nessa demanda uma oportunidade frutífera para realizar um processo formativo, vinculado à elaboração de material didático pelos próprios sujeitos. A participação, assumida como fundamento teórico e metodológico, estimula que sejam respeitados os saberes e práticas locais ao longo de todo o trabalho colaborativo, envolvendo professoras e professores da universidade, professoras, professores e gestores das escolas municipais, gestores e técnicos da Secretaria Municipal de Educação, além de bolsistas de iniciação científica e membros da comunidade local, fazendo parte, também, cerca de vinte professoras e professores da rede municipal de educação. 

No desenvolvimento do projeto, buscou-se adotar algumas condições e premissas consideradas fundamentais para a pesquisa participante. Apoiando-se em Franco (2014), cabe destacar que visamos integrar, formativamente, pesquisadores e participantes; potencializar os mecanismos cognitivos e afetivos dos sujeitos em direção a processos de auto formação; assumir uma flexibilidade criativa, evoluindo em meio ao imprevisto e ao emergente do contexto; permitir e estimular nos sujeitos a capacidade de diálogo, consigo próprios e com as particularidades de suas práticas profissionais.

Esses elementos permitem compreender melhor as características de uma pesquisa participante, ao mesmo tempo em que manifestam a discordância em relação aos traços acadêmicos/sistêmicos que permeiam e balizam a pesquisa tradicional (THIOLLENT, 1988). Embora se refiram mais diretamente ao trabalho de pesquisa, entende-se que os mesmos fundamentam, também, ações formativas, pois se trata da produção de conhecimento. Ao salientá-los, almeja-se delinear as bases metodológicas e procedimentais do projeto, ratificando os princípios fundantes que necessitam ser assumidos pela equipe durante o seu desenvolvimento. 

Como salienta Brandão (2007), assumir a pesquisa participante como método, implica em optar claramente pela construção da autonomia dos sujeitos. Não apenas na construção, mas na gestão do conhecimento coletivamente construído, valorizando a dimensão educativa da participação em meio à igualdade como desafio epistemológico (STRECK; PITANO et al, 2014). Afirma-se, em ato, o compromisso de presença e participação solidária ao longo de todo o processo, desde os seus primeiros passos.

Identificada desde as origens com o contexto histórico, social e político brasileiro, a pesquisa participante traz como característica maior a participação dos sujeitos ao longo do processo. Por não envolver, obrigatoriamente, uma ação concreta como o faz a pesquisa-ação, ela se identifica melhor com os princípios acadêmicos e com a pesquisa em educação.  Ainda que não implique na solução de um problema concreto, como na pesquisa-ação, a pesquisa participante coloca o conhecimento que pretende construir coletivamente a serviço desse mesmo coletivo e em conexão a um projeto de libertação: comunidades, grupos populares, sindicatos, associações e, no caso descrito, docentes. Considerada no longo prazo, é possível perceber que a pesquisa participante também envolve a solução de problemas concretos, circunscritos a contextos mais amplos em relação ao foco inicial.

Os impactos positivos da elaboração de materiais didáticos desenvolvidos no sentido de aprimorar a busca pelo conhecimento destacam a importância junto aos professores(as) e aos estudantes no sentido de melhor reconhecer e entender o material produzido. Ou seja, os sujeitos são protagonistas, são ativos e não apenas recebedores do recurso didático. Em geral, este tipo de investigação acarreta um aprendizado significativo, alimentando tanto o conhecimento empírico como o científico. Além do mais, lidar com diversos grupos de pessoas, como professores municipais, secretaria de educação, estudantes de graduação e professores universitários, faz com que o trabalho se torne ainda mais complexo e abrangente.

Ao longo dessa experiência em processo, obteve-se acesso a questões de múltiplo interesse no campo da formação e da atuação docente, emergentes no contexto do projeto. Por exemplo, constatou-se um significativo desencontro entre formação acadêmica e área de atuação, principalmente dos professores e professoras de Geografia do município. A partir de uma análise introdutória, identificou-se que apenas 41,94% são licenciados em Geografia e 58,06% possuem formação em outras áreas, a maioria (41,94%) em História. Os índices explicitam a distorção entre formação e atuação de professores com ênfase na área do conhecimento analisada, cuja repercussão no cotidiano profissional é complexa e problemática. 

Segundo o Censo Escolar (INEP, 2019), no Brasil, 83,2% dos professores do Ensino Fundamental, séries finais, possuem formação em licenciatura, porém, apenas 53,2% atuam na disciplina para a qual se graduaram. Na Região Sul, que envolve os estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, esse percentual é maior, chegando a 67,6%, ou seja, 32,4%, quase um terço dos profissionais, ensinam disciplinas para as quais não possuem formação específica. E embora todos os que atuam na disciplina de Geografia na rede municipal sejam licenciados (100%), apenas 41,94% possuem formação na área, revelando a condição extrema do caso relatado. 

Além das questões complementares ao projeto, percebeu-se que, durante os encontros, professores(as) da rede municipal e gestores trouxeram temas a serem inclusos no atlas, os quais não eram significativos para os pesquisadores, estudantes e professores da universidade. Como o caso das comunidades religiosas, que deveriam ser contempladas, juntamente com determinados aspectos da cultura pomerana, a qual caracteriza simbólica e materialmente o município. Os encontros para a elaboração do Atlas também permitiram que aflorassem conflitos que, provavelmente, continuariam silenciados, restritos à esfera subjetiva, sobretudo entre professores, professoras e gestores municipais.

Referências 

BRANDÃO, C. R. A pesquisa participante: um momento da educação popular. Revista Educação Popular, Uberlândia, v. 6, p.51-62, jan/dez 2007. 

FRANCO, M. A. S. A pesquisa-ação na prática pedagógica: balizando princípios metodológicos. In: STRECK, D.; SOBOTTKA, E.; EGGERT, E. (Org.). Conhecer e transformar: pesquisa-ação e pesquisa participante em diálogo internacional. Curitiba, PR: CRV, 2014. p. 217-235.

IBGE. Cidades: Canguçu. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/rs/cangucu/panorama Acesso em: 24 abr. 2019.

INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS ANÍSIO TEIXEIRA – INEP. Censo Escolar 2019. Brasília, MEC, 2019.

PREFEITURA MUNICIPAL DE CANGUÇU. Disponível em: http://www.cangucu.rs.gov.br. Acesso em: 20 abr. 2019.

STRECK, D. R.; PITANO, S. C. et al. Educação Popular e docência. São Paulo: Cortez, 2014. – (Coleção docência em formação: Educação de jovens e adultos/ coordenação Selma Garrido Pimenta).

THIOLLENT, M. Metodologia da pesquisa-ação. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1988. (Coleção temas básicos da pesquisa-ação).