Ensino Remoto e à Distância aprofunda as Desigualdades e não garante o Direito à Educação dos Povos Tradicionais e Camponeses em Tempos de Pandemia | colaboração de texto

por Clarice Aparecida dos Santos (UnB), Mônica Castagna Molina (UnB) e Salomão Antônio Mufarrej Hage (UFPA)

O Brasil e o mundo estão enfrentando a mais grave crise sanitária e econômica do planeta com a pandemia da Covid-19, que interrompeu o curso da vida das pessoas e está desafiando a lógica de produção da existência da sociedade mundial. A defesa da vida humana nessa situação emergencial exige uma postura de responsabilidade coletiva que passa, neste momento, pelas medidas de distanciamento social.

Os povos do campo, das águas e da floresta – agricultores; assentados; acampados; ribeirinhos; pescadores; extrativistas; quilombolas; indígenas; seringueiros; quebradeiras de coco; geraizeiros; cerratenses; entre outros – ainda que invisibilizados nas medidas econômicas, sanitárias e educacionais adotadas durante o enfrentamento da pandemia, cumprem um papel histórico na defesa da natureza e dos direitos humanos. Seus saberes, formas de trabalho e de produção, práticas culturais ancestrais e de organizações sociais nos ensinam o valor dos processos ecológicos que sustentam a continuidade da vida e reafirmam a importância da terra, água, floresta e biodiversidade como bens comuns em prol da saúde, educação e da produção de alimentos saudáveis.

Mesmo diante da crise, setores privatistas e fundamentalistas que visam somente manter lucros e privilégios adotam uma postura negacionista e se unem contra toda a sinergia social e medidas tomadas em favor da saúde, da vida e da solidariedade humana. Aproveitam-se das incertezas, ansiedades e medos da população face à pandemia, para, de forma cínica e perversa, induzir os trabalhadores e trabalhadoras à falsa dicotomia entre a preservação da vida e a economia. Esses mesmos setores estabelecem acordos com o Ministério da Educação (MEC), Secretarias e Conselhos de Educação (Nacional, Estaduais e Municipais) para criar soluções burocráticas e padronizadas com o pretexto de não deixar a “educação parar”. 

Eles induzem os professores e professoras a acreditarem que a Educação à Distância (EaD) e o Ensino Remoto, por meio do uso das tecnologias digitais de informação e comunicação, são a panaceia necessária para dar continuidade às atividades escolares que, acertadamente, foram interrompidas em função da necessidade de medidas de distanciamento social. 

Cabe reconhecer a relevância do uso das tecnologias como instrumentos de informação e comunicação para a população mundial, que se utilizadas de maneira ética, podem contribuir muito com o processo educativo, especialmente durante a pandemia, para orientar a população de forma rápida e eficaz sobre os cuidados com a saúde; diminuir os efeitos do distanciamento social; informar sobre novas descobertas da ciência e iniciativas dos governos e da sociedade para salvar as vidas humanas.

Nesse quadro, o Fórum Nacional de Educação do Campo (FONEC), coletivo que representa o Movimento da Educação do Campo no Brasil – integrado por fóruns e comitês estaduais, regionais e municipais de Educação do Campo; movimentos e organizações sociais dos povos tradicionais e camponeses; universidades e redes de ensino; organizações governamentais e não governamentais – tem se mantido vigilante e assumido posição firme contra a implantação precária e intempestiva da EaD e do Ensino Remoto.

Preocupado com a repercussão das medidas provisórias do MEC e dos pareceres do CNE e lutando para que os sistemas estaduais e municipais de ensino não assumam tais orientações sem discussão ampla e qualificada com as entidades e organizações da sociedade civil locais, desconsiderando as disparidades de acesso a serviços básicos e as desigualdades sociais, educacionais e regionais, o FONEC tem realizado reuniões com representantes do Ministério Público Federal da Promotoria Federal dos Direitos do Cidadão, buscando encontrar caminhos para impedir que milhões de estudantes fiquem em situação precária e desigual em relação à garantia de seu efetivo direito à educação.

O FONEC e os Fóruns e Comitês Estaduais de Educação do Campo também têm levantado informações sobre a real situação do acesso às atividades “remotas” pelos estudantes do campo em todo o país; das condições de trabalho dos professores; e das possibilidades de mediação e/ou acompanhamento dos familiares às atividades propostas, a partir da visão de quatro coletivos diferentes: as escolas; os educadores; os estudantes e as famílias. 

Em Nota divulgada em Junho de 2020, o FONEC se manifesta à sociedade e às autoridades apresentando a gravidade da situação educacional das crianças, adolescentes e jovens do campo nos estados, explicitando, como era previsível, a partir dos dados já exaustivamente conhecidos do baixo acesso às tecnologias de comunicação, infraestrutura e equipamentos nos territórios do campo no Brasil, a precariedade dos processos formativos que estão submetidos neste período da pandemia. Os relatos dos estados indicam que os índices de acesso não excedem os 25%, sendo este patamar já muito elevado para a maioria deles. Não há internet disponível nas comunidades rurais onde residem os estudantes e os poucos celulares existentes também não têm “banda larga” suficiente ou uso individual pelos educandos. 

No início da pandemia, algumas escolas tentaram entregar os trabalhos em casa para os estudantes, mas em poucas semanas este trabalho foi suspenso. Também há relatos de escolas do campo que estão imprimindo as tarefas e marcando um dia para que os pais busquem tais atividades. Nestes casos há grandes dificuldades por parte dos pais, com o acúmulo de trabalho na garantia da sobrevivência da família, somado às dificuldades de acompanhamento às tarefas escolares via “remota”, além destas idas e vindas na busca por materiais na escola ampliar o risco de contágio da Covid-19.  

Em relação aos estudantes do campo, os relatos apontam para uma sobrecarga de tarefas encaminhadas pelos professores, situação que se complica entre os estudantes que já são trabalhadores (situação de grande parte deles), e continuam envolvidos na produção de alimentos, atividade absolutamente essencial à existência de todos. 

No caso das educadoras e educadores das escolas do campo os relatos apontam que estes também estão sendo submetidos a uma sobrecarga de trabalho durante a pandemia. Além disto, há ainda um grande temor de serem dispensados, visto serem na maioria trabalhadores com contratos temporários. 

Em síntese, como manifesto pelo FONEC na mesma Nota (op.cit) sobre o tema, embora a oferta de atividades remotas possa ser considerada importante para manter os estudantes ativos nos casos onde isto é possível, tais atividades não devem ser contadas como dias letivos e nem serem objeto de avaliação, visto produzirem uma enorme desigualdade, em função das imensas diferenças de acesso à tais conteúdos escolares disponibilizados desta forma. Isto fere frontalmente o princípio da “Igualdade de condições para o acesso e permanência na escola”, disposto no inciso I, do Artigo 206, da Constituição Federal Brasileira, de 1988.

Por isso o FONEC segue denunciando a maneira como o MEC e as Secretarias e Conselhos de Educação (Nacional, Estaduais e Municipais) têm ignorado as vozes das escolas, comunidades escolares e especialistas de todo o país, quando estas se mostram coerentes com o direito fundamental à Educação de todos os estudantes brasileiros, em especial dos povos tracionais e camponeses, visando situar o verdadeiro lugar da Educação em tempos de pandemia, como corolária do direito à vida com dignidade, cuja prioridade se impõe, devendo ser posta à seu serviço e garantia, todos os esforços e recursos públicos.