Entrevita com Maria Fernanda Nunes (UNIRIO) - Série "Conquistas em Risco" | Educação Infantil

Num um contexto de conquistas em risco (seja por cortes em investimentos e programas, seja por ofensivas conservadoras no congresso e na sociedade, investidas de empresários e fundações), como é possível analisar a questão da Educação Infantil? Como as pesquisas que você desenvolve apontam uma problemática em torno do tema?

Num contexto de conquistas em risco, é preciso que mantenhamos acesa a capacidade de um contar e recontar sem limites, a fim de que os resultados de pesquisa possam se configurar como o lugar do não esquecimento. O GT-07 da Anped - Educação de crianças de 0 a 6 anos – é, sem dúvida, um espaço potente, que permite narrar e redimensionar o campo da educação infantil construído nos últimos anos e os desafios enfrentados. As investigações, que por meio deste GT podem ser revisitadas, têm desempenhado um importante papel no que diz respeito à pesquisa, às políticas de infância e à educação. Em um momento em que forças retrógradas clamam por um Brasil “passado a limpo”, é necessário lembrar continuamente a história de uma etapa educacional que nos últimos quinze anos foi impulsionada por uma série de políticas específicas, voltadas para o incremento do atendimento e a constituição de sua identidade. É preciso reconhecer a luta e suas conquistas, para que seja possível revigorar e reconhecer os caminhos e as formas de continuar a lutar.

A integração de creches e pré-escolas aos sistemas de ensino significou a inserção da Educação Infantil em um campo cujas questões são centrais no cenário de um país como o Brasil, que precisa reverter suas desigualdades. Tornar-se a primeira etapa da Educação Básica foi resultante e resultado da participação de instituições científicas, de diferentes organismos públicos e privados e agentes da sociedade civil e da política nacional de educação, que traça metas e objetivos que são constantemente reformulados, conforme as exigências políticas, econômicas e sociais. As principais transformações ocorridas implicaram em emendas constitucionais, traduzidas em deliberações estaduais e municipais, de acordo com os princípios da descentralização e da municipalização do país, para a regulação e o funcionamento das instituições educativas. Sabe-se, contudo, que nem todas as decisões logram garantir, na parte ou no todo, os intuitos que iniciaram a construção da agenda política dos diversos interessados.

Nos últimos anos, as mudanças no contexto educacional voltadas para as crianças provocaram algumas regulações para a Educação Infantil, produzidas no embate das discussões políticas e em resultados de pesquisas, terreno que demarcou esse processo: da obrigatoriedade da educação – educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada sua oferta gratuita, inclusive para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria, e o acesso a programas suplementares, material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde. Os pesquisadores da área manifestaram-se, atentos aos possíveis efeitos (negativos) da obrigatoriedade de matrícula e frequência na pré-escola. Em que pese a oportunidade de inclusão de uma parcela de crianças que não têm acesso a esta etapa educacional, alertam que as práticas pedagógicas na Educação Infantil não podem se apoiar em um modelo de conhecimento empobrecido, mecanicista, centrado em um determinado conteúdo. O monitoramento de estratégias de transição entre creche, pré-escola e escola de ensino fundamental tem sido a chave para pensar as condições destas etapas de ensino, suas diferenciações, bem como os desafios postos na organização dos sistemas de ensino e em termos de políticas e gestão públicas, de propostas curriculares e de formação de professores e de todos os profissionais envolvidos neste trabalho.

Preocupa-nos, por um lado, a entrada precoce das crianças em um ensino fundamental sem adequações para os que estão chegando – mobiliário, equipamentos, currículo etc. Por outro, as avaliações se voltam para a consolidação do processo de leitura e escrita, que, em alguns casos, como consequência, imputam à Educação Infantil a tarefa de preparar para a alfabetização, destituindo desta etapa da Educação Básica suas funções e especificidades.

Ora, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (BRASIL, 2009) reconhecem a importância de se garantir às crianças experiências de narrativas, de apreciação e interação com a linguagem oral e escrita e de convívio com diferentes suportes e gêneros textuais orais e escritos. Entretanto, sabe-se que as práticas guardam conceitos. Esses conceitos importam muito, porque é neles que se alicerçam as práticas educativas. Às vezes, a apropriação de fundamentos teóricos por aqueles que elaboram orientações curriculares ou desenvolvem atividades em sala é intencional; em outras, resulta do modo como circula a cultura ou no modo como interatuam conhecimentos espontâneos e conhecimentos científicos, ideologia do cotidiano e sistemas ideológicos. Ideias e conceitos aprendidos aliam-se à experiência do professor, mesclam-se a textos ou partes de textos, combinam-se a informações e, não raro, acabam sofrendo severos equívocos teórico-metodológicos. Percebe-se a importância de que práticas com a linguagem oral e escrita na Educação Infantil se realizem a partir de uma perspectiva discursiva, reconhecendo que as crianças se constituem como seres de linguagem, nas interações que estabelecem com o mundo. Tal perspectiva, que traz a criança e suas experiências para o centro do processo educativo, exige diálogo com os gestores municipais de educação para o fortalecimento de um trabalho de rede capaz de integrar a formação às práticas pedagógicas. Essa é uma questão central a ser enfrentada pelos sistemas de ensino.

  • Maria Fernanda Nunes é Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação/PPGEdu da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro/UNIRIO