Formação de Professoras para Educação Infantil| Entrevista com Patrícia Corsino (UFRJ)

  

 Entrevista  com Patrícia Corsino, professora Associada da Faculdade de Educação da da UFRJ e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Educação da mesma universidade. A entrevista integra reportagem especial da ANPEd sobre a Educação Infantil.

 

 

Quais são os principais programas na atualidade de formação dos professores para o trabalho educativo na Educação Infantil?

Neste momento não existem programasou projetos de formação de professores de Educação Infantil desenvolvidos pelo MEC. Uma retrospectiva das ações de formação do MEC para a primeira etapa da Educação Básica evidencia a constante disputa por recursos. Fazendo um breve histórico, observa-se que foi só a partir de 1993, quando a Coordenação Geral de Educação Infantil-COEDI passou a ter uma atuação mais significativa na Secretaria de Educação Básica do MEC, que houve um seminário que reuniu especialistas da área e a publicação de cinco documentos conhecidos como “livros das carinhas”, que muito colaboraram com a formação de professores. Destaco o volume “Critérios para o atendimento em creches que respeitem os direitos fundamentais das crianças“, reeditado e disponível no site do MEC, por sua atualidade, abrangência e simplicidade. Depois disso, em 1997 com a publicação e distribuição do Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil-RCNEI, a Educação Infantil foi incluída timidamente na ação de formação denominada “Parâmetros em Ação”. Podemos dizer que foi a partir de 2003 com o Proinfantil – programa de formação inicial em nível médio modalidade Normal direcionado aos professores que atuavam na Educação Infantil sem a formação mínima exigida pela LDB-, que houve uma ação de formação de professores mais abrangente nacionalmente. O Proinfantil contou com a parceria do MEC e universidades de todas as regiões do país, desde a elaboração do material até a implementação e acompanhamento nos municípios. Esta parceria envolveu também estados e municípios e criou umaimportante rede de formação de professores de Educação Infantil que até então não existia. O programa terminou em 2012 e neste mesmo ano, como havia uma rede de formação nas IFES, o MEC, em parceria com as universidades federais, inicia o Curso de Especialização em Docência na Educação Infantil e Cursos de aperfeiçoamento direcionados à formação continuada de professores de Educação Infantil das redes públicas. Ambas iniciativas, embora englobassem diferentes regiões brasileiras, não tiveram a abrangência demandada pelos Planos de Ações Articuladas-PAR dos municípios.

Apesar da grande demanda dos municípios brasileiros por formação continuada de professores da Educação Infantil, para esta etapa da Educação Básica não houve, por parte do ministério, nenhuma ação de formação com oferta universal, atribuições pactuadas, gestão sistematizada, material didático próprio, bolsas para cursistasetc como teve o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa- PNAIC e o Pacto Nacional Pelo Ensino Médio. 

Não há dúvida de que, nos últimos dez anos, a COEDI teve um importante papel na consolidação da Educação Infantil como primeira etapa da Educação Básica, seja elaborando documentos, desenvolvendo pesquisas em parceria com as universidades, produzindo e divulgandotextos, relatórios e recomendações entre várias outras ações que têm contribuído com a formação de professores e gestores da Educação Infantil. Desde 2013 integro o projeto “Leitura e escrita na Educação Infantil”, uma parceria entre o MEC, UFMG, UFRJ e UNIRIO, que tem como um de suas açõesa proposta de um curso de aperfeiçoamento com o objetivo de formar professores de Educação Infantil para desenvolver o trabalho com a linguagem oral e escrita, em creches e pré-escolas. O projeto foi finalizado no início deste mês de novembro com um Seminário em Belo Horizonte que apresentou os resultados das pesquisas e lançou a proposta do curso com o seu material pedagógico. Este projeto foi concebido justamente para melhor qualificar o campo da Educação Infantil num dos seus pontos frágeis: a leitura e a escrita para as crianças menores de seis anos. Sua proposta de formação de professores conta com ummaterial elaborado cuidadosamente, queteve a colaboração de mais de cinquenta professores, entre autores e leitores críticos. Uma proposta que estápronta para ser implementada em nível nacional, que teve aprovação do Movimento Interfóruns de Educação Infantil- MIEIB e de professores da rede de formação, mas que se encontra sem uma definição de seu destino. Até o momento, a formação de professores de Educação Infantil não entrou na pauta das ações do MEC do atual governo federal.

 

Em relação à Educação Infantil, quais são as prioridades para uma formação qualificada de professores?

A proposta de formação de professores que formulamos tem alguns princípios que, no nosso entendimento, seriam definidores de uma formação qualificada. O primeiro deles,  é que a formação é um direito dos professores e na perspectiva do direito significa uma ampliação de referências culturais. Mas uma ampliação capaz de articular os três campos da cultura humana – a ciência, a arte e a vida-, como nos ensina Bakhtin, numa unidade de sentido, ou seja, não de forma mecânica, externa, simplificada, mas significativa. Entendemos que isso se faz com rigor teórico, mas também de forma sensível, estética, dialógica e coletiva. É na interlocução com o outro, na responsabilidade ética da resposta que o sujeito se forma e se transforma.

Uma formação de qualidade deve partir do que o sujeito sabe e conhece para dialogicamente interagir com os vários outros (aqui incluem-se os diversos enunciados das ciências, das artes, dos professores e colegas) e expandir os seus saberes. Discordamos da forma simplista de muitas ações de formação que partem do princípio de que os/as professores/as estão em falta e que elas vão preencher lacunas. 

Visão que costuma produzir materiais instrucionais que se caracterizam por objetividade, textos curtos, modelos a serem seguidos, entre outros. Uma perspectiva que subestima os saberes e fazeres dos professores. Nossa proposta parte da articulação entre forma e conteúdo. Seu material pedagógicoé consistente, com referências teóricas explícitas, com circularidade entre teoria e práxis pedagógica e, ainda, esteticamente organizado e cuidado. Portanto, além de textos de diversos autores de referência da área, as ilustrações foram preparadas por três premiados ilustradores brasileiros e o projeto gráfico-editorial dos livros da coleção compõem dialogicamente um todo. A proposta inclui um espaço de troca entre os/as professores/as, interdiscursividade e ampliações com outros textos, leituras literárias, audiência de filmes diversos, registros de percursos vividos pelo grupo, entre outros. Enfim, partimos do pressuposto de que uma formação de qualidade precisa apostar na construção da autonomia e da autoria docentes.

 

Como você vê a importância da qualificação do trabalho educativo para a Educação Infantil, no contexto da obrigatoriedade escolar aos quatro anos?

A Educação Infantil como primeira etapa da Educação Básica é uma conquista da LDB de 1996. Embora a lei tenha vinte anos e que neste período muitos documentos tenham sido elaborados, como por exemplo, as Diretrizes Curriculares, os Parâmetros e os Indicadores de Qualidade da Educação Infantil, e que hoje temos um campo consolidado, como se observa com a expansão quantitativa e qualitativa do GT 7- Educação das crianças de 0 a 6 anos- da ANPed, as pesquisas têm evidenciado que a expansão da oferta de Educação Infantil não tem acompanhado a qualidade. Indicam que se faz necessáriorefletir sobre as especificidades da educação das crianças até seis anos e buscar formas de mudar paradigmas instituídos sem uma atualização teórico-conceitual. A obrigatoriedade aos quatro anos agudiza as questões da qualidade porque há um entendimento do senso comum de que a escola boa é aquela que ensina conteúdos de forma instrucional e “bancária” e que ir para a escolase relaciona à aprendizagem de ler, escrever e contar. Assim, a obrigatoriedade aos quatro anos, sem reflexões e ações efetivas de formação de professores de Educação Infantil, corre o risco de se sustentar em concepções questionáveis até mesmo para o Ensino Fundamental e de setornar inadequada à faixa-etária.

Qualificar o trabalho educativo para as crianças menores de seis anos é fundamental para que o direito à educação signifique também a garantia de outros direitos das crianças, tais como: brincar, interagir, se expressar de diferentes formas e com diferentes linguagens, ser respeitada nas suas diferenças e não sofrer nenhum tipo de discriminação,ter acesso a culturas diversas.

 

Na especificidade da Educação Infantil, quais são os pontos mais críticos com relação à alfabetização?

Em primeiro lugar a própria concepção de alfabetização. Este termo polifônico foi ganhando diferentes significados e tem sido tomado por alguns grupos de forma reduzida como mera aquisição do sistema de escrita alfabética, como conhecimento das letras e da consciência fonológica. Esta redução tem enfatizado um trabalho pedagógico muito diretivo, centrado no/na professor/a, pouco significativo para as crianças que passam grande parte do tempo da escola fazendo atividades relacionadas a esta aquisição. Outros pontos críticos são as concepções estreitas de crianças e de linguagem e, por extensão, do trabalho que se propõe a elas e as formas de pensar a linguagem escrita na escola.As crianças são sujeitos ativos e criativos, que não apenas recebem o mundo, mas o recriam e transformam. Elas se constituem na relação com o outro e gradativamente penetram na corrente ininterrupta de comunicação que inclui as linguagens verbal e não verbal, com entonações, gestos, expressões, imagens. Tudo isso sempre situado no tempo e no espaço. A fala é organizadora do mundo, está dentro e fora de cada um. O sujeito da linguagem é o sujeito do conhecimento. Não se pode pensar a linguagem escrita, sem discutir sua complexidade, sua estreita relação com a oralidade, com as imagens, com as práticas sociais e seus significados, suas especificidades, regras e convenções. Na perspectiva de pensar os pontos críticos, destacamos a seguir alguns desafios para a Educação Infantil no que diz respeito ao trabalho com a leitura e a escrita. Entendemos que cabe a primeira etapa da Educação Básica desenvolver atividades em que as crianças possam ampliar:

i) seu universo de referências- com acesso as culturas, artes, conhecimentos de diversas áreas;

ii) suas formas de ver o mundo e de se expressar (usando diferentes linguagens- oral, corporal, visual, gráfica);

iii) suas possibilidades de narrativa, constituindo-se como sujeito de enunciação;

iv) sua capacidade de criação da ficção e utilização da linguagem para imaginar, constituir o não observado e reconstituir o passado;

v)suas apropriações de diferentes discursividades da linguagem escrita (participar de práticas em que ler e/ou escrever sejam necessários, façam parte das interações sociais; conhecer diferentes gêneros discursivos no interior destas práticas; se familiarizar com livros de diferentes tipos e gêneros, e de outros suportes como jornal, revista, internet; ampliar seu repertório literário, cultural, linguístico...);

vi) sua capacidade de leitura. Como leitor ouvinte - compreender e interpretar textos diversos, inferir, deduzir, levantar hipóteses, estabelecer inúmeras relações. Como leitor autônomo- assumir o ato de ler – folhear livros, contar histórias, interpretar imagens;

vii) suas capacidades de escrita: desenhar, escrever de forma espontânea, não convencional, ditar de textos para um escriba;

viii)suas possibilidades de articulação entre a linguagem escrita e as brincadeiras, dramatizações, artes visuais, cinema, entre outras linguagens;

ix) sua compreensão da escrita como forma de enunciação, comunicação com o outro, de expressão (estabelecer relações entre a oralidade e a escrita; conhecer convenções referentes à linguagem escrita tais como: finalidade, estrutura composicional e estilo de diferentes gêneros; uso de letras, números, figuras, imagens entre outros elementos próprios dos textos impressos; participação na produção de textos escritos), e

x) seu interesse e desejo de ler e de escrever.

Podemos considerar estes desafios como pontos críticos, pois exigem formação de professores e uma formação que os coloque frente a questões seminais sobre infância, linguagem, cultura(s) escrita(s). É necessário que o trabalho com a oralidade, leitura e escrita seja desenvolvido junto às crianças da Educação Infantil, mas que seja feito de forma dialógica, discursiva, criativa, contextualizada, significativa.  Mas como tem sido a formação de professores da Educação Infantil nesta área? Considerando a função colaborativa e supletiva do MEC junto aos município, voltamos a primeira pergunta.