A “ideologia de gênero”, a equidade e os planos de educação

Toni Reis*

Ideologia, eu quero uma para viver (Cazuza)

Nas discussões sobre os Planos Estaduais e Municipais de Educação, criou-se uma falsa premissa, uma falácia, uma grande distorção, que – de tanto ser repetida – transformou-se em verdade para quem segue de forma acrítica os semeadores da mesma. A falácia recebeu o nome de “Ideologia de gênero”, e suas principais alegações são que por meio da educação há uma conspiração internacional que quer “perverter” as crianças, ensiná-las a ser gays e destruir a família dita tradicional. Para esta discussão, precisamos ter serenidade, racionalidade, lógica, dados e paciência para ouvir todos os lados. Não existem soluções binárias e dualistas para questões tão complexas.

Existe, sim, uma ideologia de gênero, mas não é essa que usurpou seu nome e distorceu seus objetivos. As Conferências Mundiais sobre as Mulheres e o Programa de Ação da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, entre outros, construíram um consenso internacional, ratificado inclusive pelo Brasil, em relação à igualdade entre os gêneros e à discriminação e violência baseadas em gênero.

O Princípio 4 do Programa de Ação estabelece que “o progresso na igualdade e equidade de gênero, o empoderamento das mulheres, a eliminação de toda espécie de violência contra elas e a garantia delas próprias poderem controlar sua fecundidade são pedras fundamentais de programas relacionados com população e desenvolvimento. Os direitos humanos das mulheres e das meninas são parte inalienável, integral e indivisível dos direitos humanos universais. A plena e igual participação das mulheres na vida civil, cultural, econômica, política e social, nos âmbitos nacional, regional e internacional, e a erradicação de todas as formas de discriminação baseadas em gênero são objetivos prioritários da comunidade internacional.”

Passaram-se 20 anos desde então. Neste ínterim,o Brasil realizou a Conferência Nacional de Educação Básica (2008) e a 1ª e a 2ª Conferência Nacional de Educação, em 2010 e 2014, respectivamente, precedidas de suas etapas municipais e estaduais. Foram espaços abertos a toda a população e portanto foram espaços democráticos que construíram deliberações baseadas nas conferências e tratados internacionais, outras conferências nacionais com temáticas sociais, bem como nas reivindicações dos diversos setores da sociedade.

Este processo todo serviu inclusive para contribuir com subsídios para o Plano Nacional de Educação 2014-2024 (PNE). A versão do PNE enviada pela Câmara dos Deputados ao Senado Federal destacou algumas desigualdades mais recorrentes na sociedade brasileira, com base em pesquisas e evidências, para que pudessem ser priorizadas na educação nos próximos dez anos, com vistas à sua erradicação: a desigualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual. No entanto, a versão do PNE sancionada como lei se limitou a um objetivo genérico de erradicação de todas as formas de discriminação.

Nos fóruns subsequentes de discussão sobre os Planos Estaduais e Municipais de Educação, os quais deverão ser aprovados na forma de leis até 24 de junho de 2015, foram retomadas as deliberações dos sete eixos da Conferência Nacional de Educação (CONAE), inclusive as do Eixo II “Educação e Diversidade: Justiça Social, Inclusão e Direitos Humanos”. As deliberações sobre este Eixo abarcaram medidas para promover a igualdade na educação para os mais diversos grupos da sociedade mais atingidos por injustiças: as meninas e as mulheres, as pessoas com deficiência e necessidades especiais, as pessoas negras, quilombolas, indígenas e de outras raças e etnias, as pessoas LGBT, os povos do campo, povos da floresta, povos itinerantes e povos das águas, ciganos, entre outros. Com isso, se pretendia avançar rumo ao cumprimento dos princípios do ensino estabelecidos pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996), inclusive a igualdade de condições para acesso e permanência na escola, o respeito à liberdade e o apreço à tolerância.

No entanto, em muitos casos, quando as propostas de Planos Municipais e Estaduais de Educação chegaram nas casas legislativas para serem transformadas em lei, esbarram com uma cruzada fundamentalista e medieval contra a “ideologia de gênero”. Embora o furor e a histeria fundamentalistas se centrassem na questão LGBT, na família e nas mulheres, acabou atingindo todos os demais setores sociais, raças e etnias agrupados no Eixo II da CONAE, transformando-se em uma alarmante intolerância à diversidade humana e uma preocupante imposição antidemocrática de valores que chegam a ser fascistas. Aceitam apenas a família do modelo tradicional com o pai provedor e a mãe subserviente, ignorando e menosprezando todas as demais configurações familiares que o último censo comprovou que existem na realidade brasileira atual, negando o direito das mulheres à igualdade, condenando as pessoas LGBT e desrespeitando todo o processo democrático que construiu as propostas para os Planos de Educação.

Há um descompasso chocante entre o obscurantismo de alguns setores e legisladores(as) e a realidade do Brasil contemporâneo.
Segundo o Mapa da Violência 2012, “nos 30 anos decorridos entre 1980 e 2010 foram assassinadas no país acima de 92 mil mulheres, 43,7 mil só na última década. O número de mortes nesse período passou de 1.353 para 4.465, que representa um aumento de 230%, mais que triplicando o quantitativo de mulheres vítimas de assassinato no país”. O mesmo documento informa que apenas no ano de 2011, houve 70.270 atendimentos do sexo feminino por violências registrados pelo Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) do Ministério da Saúde. O documento afirma também que este é apenas a ponta do iceberg e que há um “enorme número de violências cotidianas [que] nunca alcança a luz pública”.

Conforme o estudo Homicídios e Juventude no Brasil, baseado em dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade do Ministério da Saúde, 71,4% das 49,3 mil vítimas de homicídios no Brasil em 2011 eram negras (35,2 mil assassinatos);
O Relatório sobre Violência Homofóbica no Brasil: ano de 2012, publicado pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, revela que naquele ano houve 9.982 denúncias de violações dos direitos humanos de pessoas LGBT, bem como pelo menos 310 homicídios de LGBT no país.

Entre diversos estudos sobre preconceito e discriminação em estabelecimentos educacionais, a pesquisa Preconceito e Discriminação no Ambiente Escolar (2009), da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas / Ministério da Educação / Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), em uma amostra nacional de 18,5 mil estudantes, pais e mães, diretores(as), professores(as) e funcionários(as), revelou que as atitudes discriminatórias mais elevadas se relacionam a gênero (38,2%); orientação sexual (26,1%); étnico-racial (22,9%); e territorial (20,6%).

Esses dados, entre outros, que são fatuais, mostram que o Brasil enfrenta graves problemas de machismo, sexismo, racismo, homofobia, discriminação e violência. Para superá-los, é preciso educar para o respeito às pessoas, indiscriminadamente. Não é censurando-os dos Planos de Educação que vai resolver o problema, isto só vai garantir sua persistência.

Se há uma ideologia, deveria ser do respeito, da pluralidade, da não violência, de poder viver em paz em vez de atrás de barricadas formadas por grades, portões, cercas elétricas e muros altos, com medo da violência que virou endêmica em nosso país. Nossa discussão é dignidade humana, nossa demanda é pelo respeito, não queremos destruir a família de ninguém, queremos o respeito para todas as famílias.
Algumas das escolas brasileiras são do século XIX, alguns/algumas professores(as) são do século XX, os/as estudantes são do século XXI e alguns/algumas dos/das legisladores(as) são da idade média.

A partir da sanção dos Planos de Educação até 24 de junho de 2015, em relação às instituições educacionais onde não houver ações concretas para diminuir a violência e discriminação, nossa estratégia será de promover processos judiciais e ações civis públicas pela omissão do Estado para que pague indenizações às vítimas do machismo, racismo e homofobia.

* Toni Reis, pós-doutorando em Educação, membro dos Fóruns Nacional, Estadual (Paraná) e Municipal (Curitiba) de Educação, Secretário de Educação da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais – ABGLT.