Resistências – Políticas de ação afirmativa no ensino superior: para além das cotas

Paulo Alberto dos Santos Vieira – PPGEdu
Universidade do Estado de Mato Grosso

O debate sobre a democratização de acesso ao ensino superior ganhou novo fôlego a partir dos primeiros anos da década de 2000, quando universidades públicas (estaduais e federais) passaram a adotar políticas de ação afirmativa para o ingresso em cursos de nível superior em instituições de ensino superior (IES).  Entre 2002 e 2012 mais de uma centena de IES, públicas e privadas, passaram a adotar algum tipo de ação afirmativa em seus processos seletivos. 

Também em 2012 duas importantes decisões impactam o debate que até então se estabelecera: a decisão do Supremo Tribunal Federal que, por unanimidade, ratificou a constitucionalidade da ação afirmativa e a Lei 12.711/12 que determinava às instituições federais de ensino superior (IFES) à adoção de tais políticas considerando em sua implementação vários recortes, tais como o perfil do estabelecimento do ensino médio; a renda auferida pelo grupo familiar e o percentual de negros (pretos e pardos) e indígenas nas unidades federativas onde se localizam as IFES.

Consagradas pela sociedade brasileira desde a década de 1940, as políticas de ação afirmativa podem ser entendidas como medidas compulsórias ou não, adotadas pelo Estado ou pela iniciativa privada, entidades sindicais e organizações não-governamentais, cujo objetivo central é minimizar – e no limite superar – a exclusão e a discriminação a que são submetidos determinados grupos sociais.  No caso brasileiro, as políticas de ação afirmativa já se fizeram incidir sobre determinados grupos sociais com o intuito de contribuir com a redução das desigualdades engendradas a partir de diferenças.  Assim, tais políticas, ao longo de várias décadas, contemplaram categorias como nacionalidade, geração, gênero, compleição física dentre outras.

Em todas estas situações[1] as políticas de ação afirmativa foram saudadas como avanços e conquistas democráticas.  De modo inusitado é a partir de 2002, quando as mesmas medidas passaram a contemplar negros e indígenas para o ingresso no ensino superior, que pudemos observar manifestações de contrariedades às políticas de ação afirmativa.  Aquelas críticas afirmavam que a implementação de tais medidas contribuiriam para o aprofundamento das tensões raciais, para o surgimento de cidadãos pertencentes a distintas categorias e estariam pautadas pela abolição da meritocracia na disputa por um bem público escasso – o ensino (público) superior.

Se tomarmos como referência a década entre os anos de 2002 e 2012, podemos notar que os debates travados ao longo deste período trouxeram contribuições distintas. O debate público sobre democratização do acesso ao ensino superior, validade das políticas de ação afirmativa e matrizes teóricas das relações sociais são apenas algumas das vertentes que podem ser identificadas nas manifestações que, felizmente, extrapolaram o mundo acadêmico, envolvendo outros setores da sociedade brasileira.  Sem muito receio de equívocos, não seria exagero afirmar que cada cidadão brasileiro tinha uma opinião sobre este tema.

As cotas para negros e indígenas que asseguravam presença destes grupos sociais nos cursos superiores pôde espraiar-se por toda a sociedade, em um fenômeno poucas vezes observado ao longo da história republicana.  A apropriação do tema por praticamente todos os atores sociais auxiliava na percepção de como o tema das relações entre brancos, negros e indígenas, ou seja, o tema das relações raciais é bastante importante na sociedade brasileira. 

Diferentemente da larga experiência de adoção de ações afirmativas para inúmeros grupos sociais, ao longo de muitas décadas, é apenas quando tais políticas são conquistadas pelos movimentos sociais e estendidas à população negra e povos indígenas que o tema se torna controverso. As críticas formuladas às cotas para o ingresso de negros e indígenas nas universidades brasileiras revelava convicções acerca das relações étnico-raciais no Brasil. Os argumentos críticos circunscreveram-se às cotas para determinados grupos sociais em suas lutas pela democratização do acesso ao nível superior, mas jamais às políticas de ação afirmativa de um modo geral.  Esta situação parece ter engendrado um aparente paradoxo. Aparente na medida em que as políticas de ação afirmativa – mesmo na modalidade cotas – continuavam a ter prestígio social mesmo entre aqueles que criticavam as cotas para negros e indígenas.

As cotas de gênero para registro de partidos políticos[2], a reserva de vagas para pessoas com deficiência em concursos públicos[3] e as garantias legais à infância, à adolescência[4] e à maturidade[5] asseguradas por diferentes leis não foram questionadas anteriormente e, ainda hoje, são saudadas como avanços em uma sociedade cuja construção democrática requer zelo, cuidado e atenção e que experimentou o mais longo período republicano sem rupturas institucionais entre 1998 e 2016.

Esta “miopia” que esteve presente no debate verificado ao longo da década assinalada anteriormente sugere que a contrariedade não estava na utilização das políticas de ação afirmativa; a recusa às cotas para negros e indígenas têm como base a maneira como a sociedade brasileira e o mainstream do pensamento social estruturou de forma simbólica e concreta as relações entre brancos e não-brancos. As cotas expõem regimes de privilégios regidos pela cor.  Os “privilégios da cor” permaneciam intocáveis nas universidades brasileiras.  Ainda hoje, mais de uma década após a implementação de políticas de ação afirmativa para negros e indígenas no ensino superior, o Censo da Educação Superior informa que a presença negra nas universidades corresponde a menos da metade, quando comparado com o grupo branco.  Esta situação é comum em todas as esferas de sociabilidade no país: universidades, cargos públicos e mercado de trabalho estão assim organizados.  Ou seja, excludentes sob o prisma étnico-racial.

A contribuição do movimento negro, o grande articulador de todo este debate, é fundamental para que se possa compreender as várias lógicas e os diversos mecanismos que são usados de forma deliberada contra a população negra e os povos indígenas.  O debate sobre as cotas para negros e indígenas pôde evidenciar que este regime de privilégios da cor está longe de valores defendidos por quem critica a ação.  Individualismo, meritocracia e êxito pessoal são valores que continuam a encobrir desigualdades sustentadas por “privilégios de cor”[6] .  O que se observa são relações sociais que contribuem para a mobilidade social ascendente apenas para um único grupo social cuja pertença racial oculta os benefícios auferidos exclusivamente pela quantidade de melanina existente em seus corpos.  Não se trata, evidentemente, de estigmatizar não-negros, nem responsabilizá-los[7], porém é mister promover ações que asseguram a igualdade e reconheçam a diferença.

[1] Aqui nos referimos a Lei de Nacionalização do Trabalho, ao Estatuto do Idoso e ao Estatuto de Criança e do Adolescente, ao respeito à categoria gênero no registro de partidos políticos e ao dispositivo constitucional que prevê reserva de vagas em concursos públicos.

[2] Lei 9.504/97.  Consultar: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9504.htm

[3] Lei 8.213/91. Consultar: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8213cons.htm

[4] Lei 8.069/90. Consultar: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm

[5] Lei 10.741/03. Consultar: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.741.htm

[6] A cor das cotas nas universidades brasileiras: ação afirmativa, raça e sobrerrepresentação de grupos sociais no ensino superior. Disponível em: http://www.abpn.org.br/Revista/index.php/edicoes/article/view/584. Acesso em 16 de julho de 2016.

[7] “os descendentes dos mercadores de escravos, dos senhores de ontem, não têm, hoje, de assumir a culpa pelas desumanidades provocadas por seus antepassados. No entanto, têm eles a responsabilidade moral e política de combater o racismo, as discriminações e, juntamente com os que vêm sendo mantidos à margem, os negros, construir relações raciais e sociais sadias, em que todos cresçam e se realizem enquanto seres humanos e cidadãos. Não fossem por estas razões, eles teriam de assumir, pelo fato de usufruírem do muito que o trabalho escravo possibilitou a este país [...] Assim sendo, a educação das relações étnico-raciais impõe aprendizagens entre brancos e negros, trocas de conhecimento, quebra de desconfianças, projeto conjunto para construção de uma sociedade justa, igual e equânime”. (BRASIL, MEC, 2004: p. 6). Consultar: http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/003.pdf