Transição da Educação Infantil para o Ensino Fundamental | Entrevista com Vanessa Neves (UFMG) e Mônica Baptista (UFMG)

 

Relato de Vanessa Ferraz Almeira Neves, professora adjunta da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e professora do Programa de Pós-Graduação em Educação na mesma instituição e Mônica Correia Baptista, professora e coordenadora da Linha Educação Infantil do PROMESTRE – Mestrado Profissional – Educação e Docência da Faculdade de Educação da UFMG.  A entrevista integra reportagem especial da ANPEd sobre a Educação Infantil.

 

Transição da Educação Infantil para o Ensino Fundamental: alguns apontamentos

As crianças que são atendidas em uma instituição de Educação Infantil são as mesmas que frequentam o Ensino Fundamental, mas nem sempre a trajetória educacional  da criança é compreendida  como um contínuo. O projeto educacional deveria reconhecer as especificidades de cada etapa e, ao mesmo tempo, levar em conta as semelhanças que fazem com que todas as três etapas educativas constituam um mesmo nível de ensino.

As Leis Federais 11.114/2005, 11.274/2006 e 12.796/2013 (que altera a Lei 9.394/96 em acordo com a Emenda Constitucional 59/2009) instituíram uma nova organização do Ensino Fundamental. Algumas delas definiram a antecipação do Ensino Fundamental, a ser iniciado aos seis anos de idade e ampliaram sua duração para nove anos, e outras  ampliaram a obrigatoriedade escolar, estendendo-a dos quatro aos dezessete anos de idade. Essa nova organização traz inevitáveis questionamentos, entre os quais aqueles relacionados à articulação entre as etapas educativas. 

Alguns documentos oficiais mencionam a necessária articulação entre as duas primeiras etapas da Educação Básica, mas não mencionam a forma como tal articulação deveria ocorrer. Assim como nos documentos sobre a Educação Infantil há uma referência implicitamente negativa ao Ensino Fundamental, relativa às práticas disciplinadoras, também nos documentos acerca do Ensino Fundamental revela-se uma referência igualmente negativa à Educação Infantil, relativa à pouca sistematização do conhecimento. Há uma sutil construção discursiva que sugere a afirmação de aspectos positivos de um nível de ensino (ludicidade, integração do cuidar/educar e relação com as famílias na Educação Infantil e sistematização do conhecimento no Ensino Fundamental) em contraposição a aspectos percebidos como negativos do outro nível. A documentação recente (DCNEI, 2009) questiona essa dicotomia e tenta explicitar uma aproximação entre as etapas.

A discussão sobre a relação entre a Educação Infantil e o Ensino Fundamental vem adquirindo destaque na produção acadêmica internacional buscando a apreensão dos processos de transição entre os distintos espaços de socialização da criança (CORSARO e MOLINARI, 2005; MOSS, 2008; PETRIWSKYJ, THORPE e TAYLER, 2005; RIST, 1970; ROSEMBERG e BORZONE, 2004; VOGLER, P., CRIVELLO, G. e WOODHEAD, M. 2008, por exemplo).

Peter Moss (2008), ao analisar a situação de países integrantes da União Europeia, indica quatro possibilidades de relacionamento entre a Educação Infantil e o Ensino Fundamental, . A primeira caracteriza-se por uma subordinação da Educação Infantil em relação ao Ensino Fundamental. A Educação Infantil teria como função, nessa perspectiva, preparar as crianças para um melhor desempenho no Ensino Fundamental. A segunda caracteriza-se por um impasse, em que ambos os níveis de ensino recusam um diálogo entre si, definindo-se a partir de uma negação recíproca. A terceira situação, preparando a escola para as crianças, inverte o modelo preparatório no sentido de adotar práticas da Educação Infantil no Ensino Fundamental, adaptando a escola desse nível de ensino às crianças. A visão de um lugar de encontro pedagógico é a quarta possibilidade apontada e defendida por Moss. Nessa forma de relação, as práticas e as concepções de ambas as etapas educacionais são integradas a partir do reconhecimento de suas diferentes histórias, valores e concepções. Ou seja, é necessário questionar as práticas educativas e dos discursos construídos no contexto da Educação Infantil (e não apenas do Ensino Fundamental), e em que medida elas também contribuem para que a passagem de uma escola para outra seja caracterizada por uma ruptura. Consideramos essa questão fundamental, uma vez que a passagem de uma etapa de ensino a outra implica a consideração das práticas educativas realizadas em cada uma delas.

O conceito de eventos de preparação (CORSARO e MOLINARI, 2005) pode nos auxiliar a pensar a transição entre as duas primeiras etapas da Educação Básica. Tal conceito se relaciona com a teoria dos ritos de passagem de Arnold van Gennep (1960). Teoricamente, esse autor analisou os rituais de passagem em três fases: (i) separação/preparação, (ii) acontecimento/transição e (iii) adaptação/incorporação. A primeira fase se refere a uma separação da posição social anterior do indivíduo e preparação para a nova posição a ser assumida. A segunda fase é relativa ao acontecimento das cerimônias de transição, quando os indivíduos se encontram em um estado de liminaridade, ou seja, já não pertencem à posição social anterior, mas também não assumiram um novo lugar no grupo. A terceira fase caracteriza-se pelos movimentos de ascensão à nova posição social por meio da incorporação do participante ao novo grupo. Os rituais de passagem representam, portanto, uma ruptura e uma continuidade, mantendo preservadas as distâncias simbólicas que separam as diversas posições sociais possíveis dentro de um mesmo grupo cultural. Os eventos de preparação são, nesse sentido, atividades simbólicas que permitem às crianças e ao seu grupo social contribuir ativamente para suas experiências de transição, antecipando as mudanças eminentes em suas vidas e ajudando-as a construir significados acerca desse processo. No caso das escolas italianas pesquisadas por Corsaro e Molinari (2005), o  lugar de encontro pedagógico foi construído em diversos níveis, por meio dos eventos de preparação, tanto no contexto específico das salas de aula, nas próprias escolas e nos eventos comunitários, quanto no sistema educacional.

No contexto brasileiro contemporâneo, algumas pesquisas sinalizam um processo de impasse na transição entre a Educação Infantil e o Ensino Fundamental (por exemplo, CASTANHEIRA, 1991; MACHADO, 2007; MOTTA, 2010; NOGUEIRA, 2011; SANT’ANA e ASSIS, 2003; WILD, 2009). Tais impasses foram localizados, principalmente, na entrada das crianças no Ensino Fundamental, uma vez que práticas relativas a um maior controle corporal, bem como atividades repetitivas e descontextualizadas assumiram a centralidade no cotidiano das salas de aulas pesquisadas.

As pesquisas citadas aqui apresentaram elementos que contribuem para a reflexão sobre a transição da Educação Infantil para o Ensino Fundamental. Tais elementos podem ser agrupados em torno de alguns temas: (i) os rituais de passagem aparecem como uma importante categoria de análise, permitindo sinalizar que a presença ou não de eventos de preparação têm consequências para a incorporação das crianças em um novo ambiente institucional; (ii) as culturas escolares das duas etapas educacionais compreenderam diferentes organizações dos tempos e espaços escolares e diferentes posicionamentos dos sujeitos no interior das instituições escolares;  (iii) as formas de interações entre os sujeitos no contexto das diferentes turmas constituíram-se como essenciais na compreensão das dificuldades escolares vivenciadas por algumas crianças; (iv) as políticas públicas de educação e os impactos que têm nos sujeitos, dando os contornos daquilo que é esperado das crianças e das instituições educativas nas duas etapas educacionais, igualmente compõem o contexto mais amplo em que as experiências de passagem entre a Educação Infantil e o Ensino Fundamental se constituem.

Pesquisa realizada em Belo Horizonte (NEVES, 2010) reafirma que a falta de diálogo presente na organização do sistema educacional brasileiro em relação às duas primeiras etapas da educação básica refletiu-se no processo de desencontros vivenciados pelas crianças pesquisadas na passagem da Educação Infantil para o Ensino Fundamental. Nesse sentido, a investigação, ao ter como foco o registro da experiência infantil na transição entre os dois segmentos, evidenciou a necessidade de uma maior integração entre o brincar e o letramento nas práticas pedagógicas da Educação Infantil e do Ensino Fundamental, ambas dimensões fundamentais da infância contemporânea. É desafiador enfrentar uma discussão que integre o lúdico, a leitura e a escrita na formação inicial e continuada das/os professoras/es de crianças de zero a dez anos de idade.

Argumentamos que a importância da consolidação da identidade da Educação Infantil (com base nas especificidades da faixa etária das crianças, a construção de práticas pedagógicas que integrem o educar e o cuidar, centradas nas interações e nas brincadeiras, e que considerem a relação com as famílias) necessita dialogar com a continuidade do processo de escolarização da infância. Tal argumento se assenta na consideração de que o foco principal das práticas educativas, tanto na Educação Infantil quanto nos anos iniciais do Ensino Fundamental, é o sujeito e sua relação com a cultura. Tal foco possibilitaria a construção de uma continuidade educativa no processo de escolarização das crianças.

 

Referências citadas e complementares

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BRASIL. Lei n° 11.274/06, de 06 de fevereiro de 2006. Altera a redação dos artigos. 29, 30, 32 e 87 da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, dispondo sobre a duração de 9 (nove) anos para o ensino fundamental, com matrícula obrigatória a partir dos 6 (seis) anos de idade. 2006.

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